Sobre o sentido e significado desta acção dramática
Vejamos como se realiza e constrói conscientemente a acção do auto.
Gil Vicente define com todo o primor (um termo do seu agrado), o espaço ou lugar, o tempo e a acção. A acção trata da perpetuação, sustentação do Poder no início do século xvi em Portugal, uma das potências europeias que protagoniza a expansão europeia para além do território estritamente europeu, a primeira nação a atingir e navegar no hemisfério sul, criando a tecnologia necessária e resolvendo cientificamente, questões fundamentais das ciências náuticas da época que desde sempre afugentara o homem de ir mais além. Lembramos que até ao regresso da expedição de Fernão de Magalhães (1522), da volta ao mundo, Portugal era desde 1470/71, a única Nação a navegar - de facto - a sul da linha do equador.
Em verdade a lei das três unidades, não existiria na época, segundo podemos ler no prefácio de Maria Helena Pereira à Poética de Aristóteles, Ed. Gulbenkian, 2004, só a partir da tradução de Castelvetro (de 1570), se consagrou erradamente tal lei nas leituras de Aristóteles. A Arte Poética de Horácio e depois a tradução de Castelvetro, sedimentou o erro durante séculos. Hoje, pensa-se que apenas a unidade da acção constitui, para Aristóteles uma regra.
Contudo, resumindo ao essencial, ainda assim, verificamos aqui nesta primeira obra de Gil Vicente a unidade da acção, lugar e tempo:
- a unidade da acção, uma Visitação, a sustentação e perpetuação do poder;
- o lugar, Portugal, o Palácio Real, no Salão do trono da Corte Portuguesa;
- o tempo, a duração da sessão de Visitação, muito específica, no ano de 1502 (parte de um dia), onde se assiste à perpetuação do poder nas mãos das famílias mais poderosas, e aceite pelas cidades pelos seus representantes nas Cortes.
Para construir a sua peça, Gil Vicente coloca a Corte na acção, no palco, com a presença dos principais familiares do príncipe recém-nascido aí reunidos, não ocasionalmente, mas porque se vai realizar uma acção de Visitação. Os membros da Corte estão preparados para receber os representantes nomeados ou eleitos pelas populações das cidades, que lhes vem prestar a devida obediência, trazendo ofertas em géneros ao seu Senhor; ou para receber os inspectores da Cabaña Real de Castela. Como em muitos outros autos, as várias mensagens fundem-se numa mesma forma multiplicando-se em aspectos específicos no conteúdo da peça.
Podemos supor — afinal o que temos lido sobre Gil Vicente não tem passado de suposições, e o que vamos apresentar não interfere com a obra, nem com a sua leitura ou interpretação — portanto, conjecturando, que a nobreza já terá prestado a vassalagem devida, que terá realizado o beija-mão momentos antes, e que depois disso teremos a Visitação, uma surpresa preparada para a nobreza, o público.
O acontecimento real, o que vai acontecer de facto em Julho de 1502, ao autor, Gil Vicente, pouco importa, porque ao criar a trama para a sua obra, o importante é o que vai ficar no seu auto, a acção, o mythos, aquilo que ele, autor, vai construir como realidade de facto da acção dramática: o mythos da acção de visitação, o acontecimento posto como âmago da sua peça. E é aí que está o novo Teatro, nesta invenção do acontecimento está a criação artística. Esta invenção apenas na sua forma aparente, a fantasia criada, se confunde com a realidade, mas de facto, configura no seu conteúdo a realidade histórica da época.
Lembremos as palavras de Aristóteles na Poética, quando faz a distinção entre o historiador e o poeta… Daí que a poesia, a arte seja mais filosófica e de maior dignidade que a história, posto que as suas proposições são mais do tipo universal, enquanto que as da história são apenas particulares.
O verdadeiro Poder não está onde muitos julgam, e escapa mesmo a muitos que se consideram a si próprios poderosos. Gil Vicente mostra-nos um Poder em expansão na Península, transmite em Visitação que Manuel I de Portugal é apenas o Maioral da Cabaña que é Portugal, no momento mais um feudo da Espanha de Isabel a Católica. Portugal é apenas um dos Senhorios da Península Ibérica, da Espanha, como frisa o protagonista, um Senhorio cujo Senhor é um Rei, e cujo descendente será o Senhor deste Senhorio. Nada mais que um Senhorio! E neste sentido, com a reviravolta, a visitação na sua fase final corresponde mais a uma imagem retrógrada, aquela que está a ser imposta com a reforma dos forais.
Pastor, pastoril e pastoril castelhano
Pastor é um termo de uso comum que serve para designar os dirigentes, os letrados, os mais capazes e capacitados... Pastores são os bispos, mas também os membros da nobreza (desde que com capacidade de liderança), os homens livres, vilãos ou burgueses que a seu cargo tenham gente a trabalhar, etc.. Pastor designa assim um individuo com capacidade de liderança, seja intelectual, seja religiosa, militar ou em qualquer outra actividade humana.
Pastor é o termo pelo qual vão ser designados os dirigentes da Reforma. Os responsáveis protestantes ainda hoje assim são tratados! Mas também os católicos. Na verdade o uso da metáfora do pastor e das ovelhas, é de uso generalizado nos textos bíblicos, e em qualquer desses textos o pastor é sempre o líder de um povo, vestindo muitas vezes a voz de comando, é aquele que os restantes devem seguir. E, com a imprensa, a Bíblia anda por todo o lado.
Contudo, um outro pastoril, que não mais a reafirmação do sentido que vem sendo dado ao pastoril castelhano, será introduzido por Gil Vicente, com alguns primores a mais, embora integrando alguns elementos do pastoril castelhano, mas sem que jamais se confunda com o bucólico, será o pastoril português, que vai surgir em 1523, bem definido no Auto com o mesmo nome.
Por último, para não deixar passar em esquecimento a Miscelânea de Garcia de Resende, lembramos quando nos diz: Juan del Encina o pastoril começou.
Tornou-se obrigatória a leitura da sua obra e com ela verificámos a verdade expressa neste verso, não porque Juan del Encina tenha começado o pastoril, ou que Vicente tenha seguido o seu pastoril, mas porque, também não é isso que Resende nos quer dizer, porque o autor espanhol criou, de facto, um certo tipo de pastor muito específico, um pastor que Vicente agarrou, e em conjunto com outros tipos de protagonista, os tipos de Francisco de Madrid, em Égloga (1495), realiza uma síntese viva dos conceitos de pastor, (e das suas conotações já presentes em Encina, vaqueiro, zagal, etc.), com outras conotações que envolvem os termos usados na actividade pastoril, e com essa dinâmica viva, vai renovando e usando múltiplas configurações activas do conceito, que podemos observar em cada uma das suas presenças nos autos de que trataremos em cada caso. A ideia introduzida na Égloga de Francisco de Madrid parece-nos justamente considerada como precursora, na época, de um novo género de acção que alguns outros autores seguiram, introduzindo outros primores, entre os quais se inclui de facto Gil Vicente.
Francisco de Madrid foi secretário de Juan II de Castela e dos Reis Católicos, a sua peça conhecida pelo título de Égloga, terá sido escrita ou representada em 1495, e apresenta um diálogo entre Evandro, que figura a Paz (uma alegoria), Peligro [perigo], que personifica o carácter de Carlos VIII de França (uma alegoria e um carácter adicionados na personagem), e Fortunado [bem aventurado], protagonizando Fernando de Aragão, o Católico (como no anterior, mas agora o herói, defensor de valores dignos), onde na representação, Fortunado, se apresenta a defender a paz e a Igreja perante o Peligro. Enquanto Evandro, a paz, avisa os pastores do desastre que se avizinha.
Transcrevemos a seguir alguns versos da Égloga para ilustrar este pastoril de Francisco de Madrid, que se encontra na transição entre o pastoril clássico (grego-romano), com a figuração alegórica que transitou ao período medieval (religioso e bíblico), como na peça de moralidade religiosa Sabedoria, de Rosvita (Hroswitha), que atrás referimos, e o novo pastoril castelhano de Juan del Encina. Estes versos servem também para mostrar alguns dos elementos da mythologia da época que transitam para o universo mythológico de Gil Vicente: da (1) burra que representa a Igreja, deriva o (2) burro que representa o Estado Pontifício; a continuidade (de contínuo) do fornecimento do alimento, a (3) Graça, pelo pão e vinho; o pai de todos que tem a cargo a burra, (4) Deus, pastor de pastores; etc..
Nos versos Evandro (a Paz) dirige-se a Peligro (Carlos VIII de França), aconselhando-o a respeitar a Igreja aceitando a paz, pelo que lhe deve, e avisando-o que se ele, que antes se havia considerado o senhor do mar e da terra, está agora metendo o seu fato — encargos e haveres — onde a burra se alimenta (pasce), que tenha cuidado, que ela não larga o pasto, nem se vai sem a perdição dele...
...Evandro: Cata, Peligro, que deves membrarte
de la nuestra burra que com tanto afan
nos trae de contino el vino y el pan.
Si tu la fadigas habra de dejarte.
Y el padre de todos que en cargo la tiene,
pastor de pastores, a quien tanto deves...
(...)
Mal hazes, Peligro, tu das ocasion
que el mar y la tierra, y el cielo te aburra,
que metes tu hato do pace la burra:
Verás que no sale sin tu perdici
Mas o pastoril castelhano vem trazer ao teatro algo de muito novo, que até então nunca tinha sido tratado e, na época, essa novidade deve-se a Juan del Encina que, em 1496, publicou um conjunto de oito peças que, pelo seu conjunto, parecem corresponder ao trabalho desenvolvido entre 1492 e 1496, e mais provavelmente entre 1492 e 1494, portanto, alguns desses trabalhos serão necessariamente anteriores à Égloga de Francisco de Madrid, pelo que se comprova ter sido ele a começar um novo tipo de pastoril, como diz Garcia de Resende. De facto, observamos em Juan del Encina um novo pastoril, longe, ou que nada tem a ver com os pastores medievais, como o próprio Encina sublinha nestas suas obras...
Tenha sido a Égloga de Francisco de Madrid, tenha sido a Comédia Antiga grega, de Aristófanes, ou as obras de Homero, com os seus pastores de povos e os pastores de homens (como Agamenon, Macaon, etc., na Ilíada), que tenha estado presente na concepção das primeiras obras, as técnicas de elaboração das obras, o trabalho de formulação e figuração do mythos em Gil Vicente, está mais próximo das recomendações de Aristóteles para a tragédia, melhor para a Arte dramática do que quaisquer das obras de autores seus contemporâneos, e por isso se enraíza no teatro grego da antiguidade, donde o autor da Poética tirou a sua teoria
Devemos ainda referir que Gil Vicente ou conhecia a Égloga, ou esta forma de expressão (e um salto) de satisfação — Pues que esto es así, yo quiero saltar... — que Peligro utiliza era, na época, uma forma popular de exprimir a sua plenitude.
Mas o que Resende também diz como contraponto ao isto cá de Gil Vicente, é que esse tal pastoril é algo de muito especial, e é isso que vamos encontrar logo nas primeiras obras de Juan del Encina, onde ele próprio o assinala.
Naquelas oito peças publicadas por Encina em 1496, duas são de Natal, sendo uma completamente profana, duas do fim do Entrudo, outras duas da Páscoa (uma da Paixão e morte, outra da Ressurreição) e as outras duas são também profanas, e todas elas pertencem ao seu trabalho para os Duques de Alba, o que sucedeu entre 1492 e 1496 (ou 1497). A sua ordem e datas respectivas, talvez seja possível de estabelecer, mas não foi nesse ponto que atentámos, a nós interessava-nos de momento, aquilo que ficou escrito na didascália de uma das Églogas de Natal, de onde retirámos o seguinte fragmento:
... venido el mayo, sacaría la copilación de todas sus obras, porque se las usurpavan y corrompían y porque no pensasen que toda su obra era pastoril, según algunos dezían, mas antes conociesen que a más se estendía su saber.
...assim, para que não se pense que a sua obra era apenas pastoril, e assim conste publicamente, o autor dá a conhecer a todos que a mais se estendia o seu saber. A intencionalidade do final da frase é a mesma que encontramos em Resende, com o isto cá e o pastoril. Também Encina nos vem dizer que na sua obra não há apenas o pastoril (tal como surge nas peças medievais), como segundo alguns diziam.
A análise que fizemos das obras de Juan del Encina debruçou-se sobre a questão pastoril, e esteve limitada, por força do nosso estudo, à compilação publicada antes de 1502, em Salamanca 1496. Da publicação em causa, fizemos uma leitura muito rápida das peças e observamos que, em todas onde a acção é mais profana, encontramos os seus pastores (mesmo nas peças da Páscoa se nós considerarmos Cristo como supremo pastor), e constatámos que, naquela em que levanta a questão de usurparem e corromperem as ideias expostas nas suas obras, é para combater a fraca ideia do tema pastoril com que as classificam, e por essa razão escreve aquela égloga, para que fiquem sabendo que a mais se estende o seu saber… Nas peças mais profanas é onde o pastoril está mais presente. Ou seja, o estender do seu saber está exactamente no pastoril, tal como nos diz Garcia de Resende, Juan del Encina o pastoril começou… Vejamos como...
A égloga em causa é a Égloga representada en la noche de la Natividad (de 180 versos) de onde vem a citação acima, as duas personagens intervenientes são dois pastores, um dos quais é a figura do próprio Juan del Encina, tal como ele próprio enuncia na didascália inicial, que serve de argumento. O diálogo que desenvolvem nada tem a ver com o Natal (é profano), o pastor Juan (Encina) trata de se defender, como poeta, perante as críticas que lhe são feitas por Mateo, e por outros da sua laia, mostra aos seus patronos a sua familiaridade com a cultura romana, evidencia um conhecimento das questões políticas internacionais, e fazendo do Duque de Alba o seu César, elogia o seu poder, a sua força e o temor que a todos desencadeia. Depois, no decurso do diálogo vai, não só anunciar a sua riqueza e o seu bem estar pessoal, como o seu bem vestir — mais ainda em Maio, quando da tosquia das ovelhas — e a sua boa mesa, o bom comer que terá para si e para oferecer. Mais adiante afirma de tudo saber, pois de zagalito aprendeu e cresceu, e agora o seu trabalho, vai lavrado com muita arte…
¡Tenme por de los mejores!
(…)
que si quieres de pastores,
o si de trobas mayores, (125)
de todo sé, Dios loado.
(…)
Mas agora va labrada
tan por arte mi lavor,
que aunque sea remirada
no avrá cosa mal trobada,
si no miente el escritor.
Ora digo que en ti está
un bien chapado zagal.