Sobre o suporte Cultural
Como temos referido noutras publicações, supomos que, entre Novembro de 1522 e os primeiros meses de 1523, se terão desenvolvido na Corte portuguesa – nos célebres serões da Corte – diversas intervenções culturais que teriam ultrapassado os temas mais comuns e habituais na Corte de Manuel I, os da antiguidade grega e romana (as epopeias, as tragédias e comédias, as mitologias clássicas), ou dos inovadores (cousa nova) italianos (Dante, Boccaccio, Petrarca) e, na sequência destes últimos, enveredando por outros temas que então se apresentavam mais em moda: do domínio pessoal do poeta (indivíduo humano), do seu sentir, sentimentos e confrontos amorosos, enredos patéticos, laudatórios, elegíacos, líricos, etc.; temas tais como: as Bucólicas de Virgílio, os Idílios de Teócrito, Mosco, mas também a Arcádia de Jacob Sannazaro, bem como outras obras de autores italianos coetâneos, poemas em folhas impressas ou cancioneiros manuscritos que chegavam à Corte portuguesa através de embaixadores, mercadores, etc., ou mesmo livros impressos adquiridos nas feiras de Medina del Campo, Anvers (Antuérpia), ou outras. Também referimos que, durante o período de meses atrás referido, esteve em Portugal, de visita a seu irmão Pedro Laso de la Vega (ex-comunero de Castela, exilado), frequentando os serões da Corte portuguesa, o jovem Garcilaso de la Vega – soldado da Guarda Real de Carlos V, nobre cortesão, mas ainda aprendiz de poeta (na verdade ainda um desconhecido como tal) – e, se Sá de Miranda ainda não tinha partido para Itália, estes serões terão contribuído em muito para o incentivar na sua vontade de partir.
Esta actividade cultural, na qual Gil Vicente teve por certo uma intervenção qualificada e participativa – nas suas funções de mestre de cerimónias e de retórica das (re)apresentações – na programação e animação de colóquios que terão tido forte influência em Bernardim Ribeiro. Entretanto, o dramaturgo introduz nas suas peças, algo desse universo cultural que chegou a fazer moda na Corte portuguesa, reflectindo o gosto do seu público quase sempre de uma forma crítica, chegando ao sarcasmo, como em Pastoril Português (1523), ou formalizando uma crítica mais subtil como ainda em Vida do Paço (1524), ou formulando uma sátira em idílio encomiástico à actividade dos médicos de el-rei, como em Físicos (1524), ou ainda recriando os idílios como ponto de partida e motivação do espectáculo renascentista, enquadrando-os na acção dramática da sua peça, como em Frágua de Amor (1525), ou mesmo assumindo esse universo cultural, o universo pastoril da Arcádia clássica, na concepção do seu próprio trabalho, como acontecerá com Aderência do Paço (1525).
Uma referência a Lamentaciones de amores de Garci Sanchez num dos versos, Oh lágrimas de mi consuelo, faz parte do universo cultural coetâneo, a obra teria influênciado grandemente o poeta Garcilaso de la Vega, como referimos quando tratámos da peça Vida do Paço, e deve ter sido discutida e comentada, quando da sua presença na Corte portuguesa.
Assim, em Frágua de Amor, o panorama de fundo para iniciar a peça, define-se em cenário de idílio clássico (grego, helenista), e constitui, para o autor e para o seu meio sócio cultural – a Corte portuguesa, – o modelo mais apropriado para formular o enredo em conformidade com o mythos criado e já estabelecido como orientação, pois, se no enredo se refere ao carácter da educação de Catarina e à visita de Cupido (Erasmo) ao imperador, no mythos refere-se à manifesta atitude de Carlos V (Júpiter) de integrar e utilizar a doutrina e as ideias de Erasmo (Cupido), em seu proveito e do Império, na luta ideológica contra a Igreja de Roma em confronto com o Papa Clemente VII. A referência a uma formal e aparente aderência do imperador ao reformismo de Erasmo está bem explícito na peça pelo clima de idílio gerado em Espanha por Cupido (Erasmo), que após a conquista de Catarina: Y obrado este labor (210) / por parte de Portugal / visitó el emperador…
A luta política de Carlos V em confronto com Roma, isto é, a guerra na frente ideológica é expressa por Gil Vicente pela imagem inversa – reflexo no espelho – na acção de Cupido (correo mayor / y ambaxador principal) perante o imperador obtendo os resultados próprios de um idílio:
Hizo buenas maravillas (215) / renovó los corazones / abatió openiones / hizo amores de rencillas, / de las discordias canciones. // De los enojos deseos / de los males esperanzas / de las iras concordanzas / y de los respectos feos / muy graciosas mudanzas.
O lugar da acção dramática da peça formaliza-se na Espanha imperial (incluindo os domínios em Itália, efectivos e desejados) como sede do Sacro Império, idealizada como paraíso idílico, um lugar imaginário criado em função da acção da peça, um lugar ameno propício ao amor, para onde desce Cupido e, depois Vénus em procura de seu filho (caracterizando o lugar, e a acção, pela alusão ao texto do idílio Eros fugitivo de Mosco). O Peregrino está em Roma na capital do Sacro Império e, como tal – como os romanos – imita os melhores no género (idílico) grego para o tipo de situação criada na peça que vai apresentar.
Costa Ramalho assinalou a alusão à peça ao Eros fugitivo, o idílio onde se pode ler: Cipris [Vénus] llamaba en alta voz a su hijo Eros [Cupido]: “Si alguien ha visto a Eros vagando por los caminos, sepa que el fugitivo es mío; tendrá una recompensa quien me indique su paradero. (…) “Ese niño está marcado con señales numerosas, y le reconocerías entre veinte más. No es blanco de cuerpo, sino semejante al fuego; sus ojos son agudos y llameantes; su espíritu es astuto, pero sus palabras son dulces. No piensa lo que dice, y su voz es como miel; pero, cuando se irrita, su espíritu es cruel y está lleno de fraudes. No dice nada de verdad el niño astuto, y juega cruelmente… Como se pode verificar Cupido é descrito como bem capaz de um comportamento pérfido e, na frágua, está tudo banhado em fogo, tal como diz o final de Eros fugitivo.