Do Prólogo à intriga
Dando início à apresentação deste estudo devemos alertar para o engano que permitiu que Vida do Paço permanecesse oculto pelo sentido do enredo desta peça de teatro: Carolina Michaelis de Vasconcelos em Autos portugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina, (Madrid, 1922) considerou, desde logo e sem se questionar (decidindo equivocada), que a Criança referenciada como centro da acção dramática do Auto de dom André, seria descendente (filha ou filho) das personagens Dom André e sua Senhora, apesar de em lugar algum do texto da obra se afirmar a paternidade deste casal que, na aparência, seria composto pelos principais protagonistas da peça. E ainda hoje, pelas leituras das edições críticas mais recentes do Auto de dom André, nos parece que nunca ninguém terá posto em causa essa breve leitura da peça… E, encoberto pelo equívoco, assoma o engano que se instala no enredo, provocando os desvios de sentido e causando o destroçar do tecer da trama, e sem ela, não é possível atingir o mythos, nem se alcança a acção dramática da peça.
Como veremos, a Criança está apenas encomendada a Dom André, tal como está encomendada Dona Belícia – a mãe da Criança, – e portanto, o enredo não estará exactamente dividido em duas histórias, representando-se a acção dramática numa realidade de facto (do mythos), na sua unidade muito complexa – porque com várias questões envolvidas, – mas que se resumem na necessidade da separar a mãe Belícia da sua filha de dois anos, a Criança, provendo a educação desta para viver numa das Cortes europeias, no caso, para a vida do Paço. E esta educação deverá constituir uma assimilação de virtudes conducentes a uma vontade própria de obediência às normas da Corte, de cortesia e respeito por todas as outras pessoas. Assim, pela semelhança ou contraste das situações criadas na acção dramática, na correlação, reciprocidade, negação ou identidade de cada caso, assistimos aos confrontos que, em toda a problemática de criar – com o sentido de educar, – se apresentam à sociedade humana da época, no caso à vida do Paço: Porque, o trabalho inmenso / de criar, nunca é crido, / e quem já o tem sabido / julgará bem por extenso / que é trabalho ensofrido (20).
Nas obras de Gil Vicente, o Paço durante o período de el-rei Manuel I, mais propriamente até ao Auto das Barcas, constituía uma referência ao Paço Real da Ribeira de Lisboa, todavia com a queda – o descrédito, pela bazófia que precedeu a guerra no Norte de África em 1515 – e a creditação de Portugal na Europa após a derrota de Mamora, adquire outros sentidos, assim, nas peças de teatro do período de el-rei João III de Portugal, o Paço é um apontador (uma referência mais próxima de um código do que uma alusão) para o Império, no limitado conceito da época e no contexto da Europa ocidental, o império de Carlos V – constituído ou integrando reinos, principados, ducados, condados, etc., – mas também com os reinos seus aliados, que serão em menor ou maior grau seus vassalos. O Paço está onde se encontra presente e cuidada a Vontade do imperador, a ser seguida, alinhada e em geral, obedecida. Todavia, num sentido mais restrito, pode apenas referir-se à Corte imperial.
Em Vida do Paço, na versão Auto de dom André, Gil Vicente sublinha que a obediência, real ou aparente, é uma questão de educação, de formação moral do indivíduo para um fim bem determinado, no caso para a vida do Paço. E esta questão da educação (ou falta dela), tal como as atitudes, a moral apropriada ou mais específica (social, cultural, humanista) para a vida no Paço percorre toda a peça e todas as personagens em todo o seu tempo. No Prólogo a questão é desde logo colocada com a necessidade de encontrar uma Ama para a Criança, porém, já não ama de leite, mas uma educadora. Assim começa a intervenção do Fidalgo ao entrar em cena: Senhora, minha tenção / é que havemos de buscar / modo algum de criação / para se haver de criar / este fruto de bênção. (5)… Pelo que repetimos, pois continuando com a questão de educar (criar) diz depois a Senhora: (…) Porque, o trabalho imenso / de criar, nunca é crido, / e quem já o tem sabido / julgará bem por extenso / que é trabalho ensofrido (20).
Por último, concluindo o pensar do Fidalgo, o tema da peça é desenvolvido alargando-se o seu âmbito, expondo a importância das virtudes na educação, pois pela imitação, no convívio e na aprendizagem, é condição primeira que Ama (educadora) seja virtuosa, porque o ser ela formosa ou nobre (de preço, rica ou de nobre casta social) não contribui em nada para a educação, e a pobreza em virtudes, ou suas falhas, resulta em gente malcriada, em desobediência aos pais e a outros mais, em falta de educação. Esta questão logo colocada no prólogo é muito importante porque justifica e prepara o que vai suceder com a escolha dos vilões para educadores da criança.
Na forma aparente da peça, é o Fidalgo que expõe um dos aspectos da questão temática, assim bem explícita no enredo, dizendo:
[ Fidalgo: ]
Senhora, não está o bem
em a ama ser fermosa,
que isso não vai nem vem,
seja ela virtuosa
que isto é o que convém. (55)
Porque, a não ser assi,
dado que seja de preço,
crede-me, senhora, a mi,
que não pode ter bom fim
quem teve roim começo. (60)
Se carece de virtude
e tem má inclinação,
é tomado por rezão
que a criança se mude
logo à sua condição. (65)
E saem mal inclinados,
desobedientes, e tais
que desobedecem a seus pais,
e assi, tam malcriados,
que o mesmo fazem òs mais. (70)
Esta última copla, transcrita acima (versos 61 a 70), encontrámos mal lida (interpretada) nas publicações da INCM, na edição de José Camões, Teatro Português do Século XVI, I – Tomo III. Ed. 2010. No verso 70, comete-se o mesmo erro já cometido por Maria José Palla, na edição também da INCM, de 1993, Auto de dom André, transcrevendo o verso: que o mesmo fazem às mães; em vez de, correctamente o escrever: que o mesmo fazem òs [aos] mais.
Encontrámos ainda diferentes registos dos versos 64 e 65 – que à criança se mude / logo a sua condição – optámos pela de Maria José Palla, porque nesta copla o autor explica que se a ama carece de virtude e tem inclinação para o mal, é natural, ou adquire-se por racional (é tomado por razão), que a criança, – boa por natureza – se mude logo imitando ou adoptando o mau carácter da ama. Isto é, as crianças muito mais depressa que o bem, aprendem e tomam os maus exemplos: que a criança se mude / logo à sua condição, a condição de má inclinação da ama. E em consequência disso, como o autor exprime ao desenvolver o conteúdo da primeira estrofe da copla, os pupilos saem mal inclinados, desobedientes, e tais que desobedecem a seus pais (pais: pai e mãe), e assim, tão malcriados (mal criados, mal educados), que o mesmo fazem aos mais… Ou seja, o mesmo comportamento terão para com os demais, desobedecendo (sendo malcriados) a todos os mais, isto é, a toda ou mais gente a quem devem obedecer como a seus pais: resultado de saírem mal inclinados (deseducados, mal criados).
Embora possa parecer trivial não quisemos deixar passar aquelas incorrecções sem apresentarmos as necessárias alterações, uma vez que se vê repetir uma interpretação equivocada por reconhecidos especialistas que, como sabemos, muito correctamente seguem a edição impressa mais antiga (séc. xvi), contudo, a edição de 1625 corrige o erro (de rima e do sentido dos versos). Concluímos portanto que, ou o erro foi corrigido na edição do século xvii, ou, o mais provável, esta edição mais tardia terá sido realizada a partir de uma cópia onde o erro não existia. Como então, todos estamos sujeitos a errar… E, como dizia Bento de Jesus Caraça: se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.
O enredo, expondo a forma aparente da peça, é gerado a partir do mythos da peça, formulado como uma intriga e construído para apresentar, de modo indelével, o seu intrínseco secretismo na resolução dos conflitos presentes nos acontecimentos que mais intensamente interferiram no decorrer da vida do Paço, desenvolvendo e embebendo a intriga de profunda ironia, posta em confronto com as mais simples e vulgares interpretações da República de Platão (de facto, interpretações ainda hoje correntes). Porque só captando o mythos se evidencia o conflito primordial que está presente na acção dramática da peça, surgindo então o enredo como uma firme determinação de Dom André em desobedecer sobre a questão da Criança (separando-a de sua mãe) e, também, como uma consequência de “ideias poéticas” popularizadas que consideraram possível a concretização pelo casamento de “um amor” que, segundo as normas da república do Paço, seria proibido: o casamento de Belícia com Belchior. Pois, a acção na intervenção de Belchior, com toda aquela demonstração poética de eloquência clássica (e os seus cúmplices até são poetas e músicos), serve exactamente para sublinhar que, seguindo aquelas simples interpretações da obra de Platão, a arte, a poesia e os poetas não se enquadram nas normas educativas, quebram as regras estabelecidas e actuam à margem das leis desta república. E a ironia do autor expande-se ainda mais, pois, se o enredo se apresenta numa constante de obediência e sujeição ao Paço, no mythos, a acção dramática constrói-se a partir de múltiplos actos que lhe afirmam uma firme desobediência: sobre a presença do Pajem; sobre o destino da Criança com a separação de sua mãe; e, sobretudo, sobre a educação da Criança, pela selecção e pela própria origem e identidade dos melhores educadores, que serão vilões em confronto com a Corte imperial, com a vida do Paço.
Para sublinhar o caso das ideias poéticas, das paixões e emoções, nesta república que prima pelas virtudes, nada melhor que a integração do poeta na peça: o Ratinho. Ele emociona-se com facilidade, vem aprender a tanger o instrumento de cordas, faz versos à moda de então (bucolismo) na sua intervenção – ando, senhora, tão cilhado / que não venha boi que lavra / todo o dia com o arado (768) – expõe prontamente a sua infelicidade e depressa declara os seus amores a Hilária à revelia de tudo o mais. Não venera os seus pais, não é comedido nas falas, implica com todos os outros, etc..
De resto, mostram-se várias formas de integração das personagens, nas normas e virtudes aparentes que regem o Paço, como pelo vestir e pela linguagem o casal de Vilões, ou o seu filho, pela sua conformação, depressa pretendendo assumir os preceitos do Paço no seu comportamento, etc..
A resolução do conflito primordial é enunciada, desde logo, no início da peça, nas primeiras palavras ditas em cena, e concretizada com a separação da mãe (Belícia, que já perdeu o espelho) de sua Criança, entregando-a a uma nova ama, a educadores que deverão ser moral e culturalmente responsáveis, capazes de prover uma educação condigna para uma criança que se pretende venha a ser integrada em altos cargos (a criança é fruto da bênção) da vida do Paço. E mais tarde, na acção dramática da peça, concretizando-se a razão do impedimento de Belícia se querer chegar à janela enunciada ainda no Prólogo – Senhora, não consintais / vossa irmã pôr-se à janela (92), – impedir a concretização da relação matrimonial proibida entre o par de apaixonados, Belchior e Belícia, afastando esta do seu pretendente fazendo assim cumprir os desígnios do Paço na interposta pessoa de Dom André, a quem ela tinha sido encomendada pela morte de seu pai.
Entretanto, na peça representa-se a concretização da resolução do conflito subjacente à acção dramática, e um dos objectivos do autor é que o seu público atinja a leitura do conflito primordial no desenvolver da intriga. Sobretudo porque uma boa parte da resolução desse conflito assenta na decisão de fazer intervir no Paço algo que vem de fora, introduzindo gente que vem do exterior, pessoas qualificadas mas de outro meio social, de uma outra elite em formação, e sobretudo tendo princípios éticos em clara oposição aos do Paço. Na verdade, podemos pensar que, para o autor, boa parte desse conflito só existe por uma obediência cega às normas, e a uma formalização desadequada das virtudes cardinais (justiça), pois a este respeito devemos lembrar a figuração da acção (na defesa) pela intervenção realizada pelo autor no Processo Vasco Abul.
Antes da acção teatral passar para o cenário do exterior da casa de Dom André com a entrada em cena do Ratinho cantando, desenvolve-se ainda no prólogo da peça, a exposição de partes da trama enredada que constituem uma consequência do conflito primordial, preparando o público para o que se vai passar na acção, sem deixar de o alertar para a questão de origem desse conflito. [Fidalgo] … Senhora, não consintais / vossa irmã pôr-se à janela. [Senhora] Eu terei bom tento nela / e logo sem deter mais / me vou dentro para ela. (95).
Portanto, com as suas cenas realizadas num salão provido de algumas portas de acesso a outras dependências (algumas visíveis) e uma porta para um exterior presente no cenário, o prólogo está constituído por um resumo sumário dos conflitos que se irão desenrolar na acção dramática da peça, concluindo-se numa fala do Pajem, sozinho, caracterizando o ambiente de sujeição a que o Paço o submete, a situação em que ele se encontra de facto, pela sua própria vida, onde não vê nenhum bocado donde haja contentamento, vida sem fundamento, que se quereria de obediência (pajem) e, por fim, declarando o nome da peça: Vida do Paço… Da seguinte forma: Quem seus anos gasta em Paço, deve atentar que se a vida desejar, / outra vida há-de buscar…, que eu a mesma conta faço.
Não este Triste modo de viver…
Repare-se quantas vezes se repete a questão nuclear da vida, pelos termos: vida (6 vezes), viver (2 vezes), além do verbo gastar para: o tempo, a mocidade e os anos. A questão é ainda muito bem sublinhada com: morrer, andar, estar, tempo gastado, gasta a mocidade, pouco a pouco vão-se os anos, vai-se o tempo e a idade, quem seus anos gasta em Paço.
[ Pajem: ]
Triste modo de viver
é a vida desta feição...
Eu não sei porque rezão,
não será milhor morrer
que viver em sojeição. (105)
Andar sempre é trabalho,
estar em casa, enfadamento...
Para que é mais? Eu não sento
nesta vida nenhum talho
donde haja contentamento. (110)
É vida sem fundamento,
tempo gastado em vão...
É vida de perdição!
São esperanças de vento
esperar por galardão. (115)
Gasta homem a mocidade,
pouco e pouco vão-se os anos,
vai-se o tempo e a idade...
Não achais senão enganos
quando caís na verdade. (120)
Por isso deve atentar
quem seus anos gasta em Paço,
que, se a vida desejar,
outra vida há-de buscar...
Que eu a mesma conta faço. (125)
Note-se que esta intervenção do Pajem, que fecha o prólogo, apresenta uma unidade temática e formal estraordinária: é composta por duas coplas ligadas pela rima – contentamento, fundamento – e termina com uma quintilha (isolada) que conclui com uma decisão sobre o que antes foi exposto.
Pela forma do prólogo, e com esta forma do seu concluir, somos levados a reflectir na censura (do original) de Vida do Paço, e a pensar se esta peça não teria tido na sua abertura um trecho inicial, de forma simétrica correspondente a este remate do prólogo, uma apresentação feita pelo Pajem anunciando algo relacionado com casos decorrentes ou influentes, circunstanciais para a leitura da peça, e depois, dando entrada a Dom André com a Senhora e a Criança, pois sabemos que a personagem Pajem estará em cena (ou em proscénio) sem haver no texto auxiliar qualquer referência à sua entrada. Pois sabemos isso pelo que se passa cá, quando o Fidalgo lhe dirige a palavra: Chama cá o Veador / que o hei logo mister. (35). E logo o Pajem se chega a uma das portas, que abre, ou lhe abrem e espreita, ou dai chama o Veador dizendo: Chama-vos muito à pressa / cá o senhor dom André – e logo retorna (cá) com a personagem chamada.
Após uma leitura atenta do texto da peça, o que desde logo se destaca na sua parte inicial, é a percepção da unidade do Prólogo, dando uma perspectiva do conflito fundamental, e sobre quase tudo a que o público vai assistir no suceder na acção dramática, porém, como habitual nas obras de Gil Vicente, introduzindo (se se pode dizer) por omissão, algo imprevisível, não assinalado na apresentação (prólogo), que permitirá, nesta peça pelo contraste pela negativa, esclarecer melhor o tema da peça (a educação, virtudes / obediência, na vivência concreta presente na acção dramática, perante a actuação do Ratinho), no caso as virtudes assimiladas, ou inversamente, a falta de virtudes adquiridas (falta de educação, má inclinação / desobediência). Deste modo, logo a seguir ao prólogo entra o Ratinho, personagem desenquadrada do conflito fundamental da peça, no papel do mal criado. E mais tarde, em pleno contraste com o que sucede e as formas aparentes do diálogo, surge Belchior, feito poeta emocionado, com a sua serenata ao luar.
O prólogo (até ao verso 125) e o êxodo (a partir do verso 1451) restam bem demarcados no Auto de dom André, enquanto que as outras divisões da peça, as marcações das suas partes, desapareceram (quase) por completo, restando-nos a hipótese de as procurar descobrir percorrendo o sentido da acção dramática.
(...)