E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
o projecto
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Sobre a peça "Aderência do Paço"
...da Arcádia ao Paço, os enlaces entre Portugal e Castela
       A peça de Gil Vicente designada por "Aderência do Paço" - tal como a peça intitulada por "Vida do Paço" - foi proibida pela Censura Real, a Inquisição, desde que há memória dela, pois as referências nos Index da Inquisição constituem as únicas notícias da sua existência.
      A peça Aderência do Paço escrita e representada por Gil Vicente em 1525, foi por nós identificada numa publicação de autor anónimo, com o título de "Auto de Florisbel". Não se trata de reescrita de uma peça, mas da publicação da obra original com um outro título. Contudo o texto da obra foi bastante danificado pela Inquisição, sofrendo o riscar da Censura Real.
     ...momentos envolvidos na peça:

      O momento político é de casamentos de português (el-rei João III) com castelhana (Catarina de Habsburgo) e de castelhano (Carlos I) com portuguesa (Isabel de Portugal), Gil Vicente apresenta dois pares de namorados, um par português (inviável, porque vivem amor ideal de irmãos), e um par castelhano (inviável, porque é um amor por um ideal político). No mundo real sucedeu o casamento de el-rei João III com Catarina, que será (e estaria) figurado na peça com o casamento da Ratinho, e, no momento da representação da peça, sucede o casamento de Carlos V com Isabel de Portugal, portanto logo a seguir ao espectáculo de Teatro, celebra-se a festa deste casamento imperial, com o imperador representado por Carlos Popeto. Portanto, na idealização do enredo, o autor desfaz os pares inviáveis, porque não são senão outras formas de amor humano, assim, trocando de par, juntam-se as figuras por amor recíproco entre duas Nações, tanto maior ou mais que o amor entre duas pessoas, como entre Natália e Perindo ou entre Fismonte e Laurélia, o autor resolve o tema do momento e completa-o com o casamento do Ratinho João e com a realidade da festa do casamento de Isabel de Portugal.
      Tanto Fismonte como Laurélia, sofrem por amor inadequado ao momento e às circunstâncias políticas de aderência de Portugal ao Império (ao Paço), e só por isso impossível de realizar. Assim, Fismonte não é irmão de Natália, mas ela sempre considerou o seu amor como amor de irmão, e Perindo jamais considerou o amor de Laurélia como amor pela sua pessoa, mas antes como um amor pela Pátria e pelo seu povo (o gado).
      Um resumo do enredo

      A acção dramática da peça decorre com a Corte portuguesa no seu tempo áureo, mais precisamente, pouco tempo antes dos casamentos de João III e de Carlos V, assim é por demais evidente que o autor da peça só pode ser Gil Vicente, e sobretudo porque obedece ao seu saber e saber fazer, integrando-se no conjunto sequencial das suas peças e na sua mythologia de dramatização da História da Europa. O autor criou um ambiente idílico, um universo pastoril para Florisbel (Portugal) onde se vão encontrar os pares de falsos enamorados: logo, Fismonte por Natália, um amor equivocado porque um amor de irmão (ainda que o não seja); depois, o sonho do Ratinho, o amor de gato, que introduz na peça o contraste com a realidade da Corte portuguesa, com os seus equívocos de amor; e, por último, o amor de Laurélia por Perindo, um amor contingente, equívoco e ambíguo, porque um amor pela Pátria e por um ideal político que ela vê no homem que em pouco tempo atraiçoou a luta por um ideal comum, dispersando aqueles que o seguiram, assim se dilacerando esse amor de forma dramática (quase trágica) na peça. Em falta estará o caso do Amo com a castrejana.
      Então este universo pastoril – tomado pela Arcádia clássica – deverá muito serenamente ouvir as dores de amor e conduzir à purificação dos sentimentos das personagens, purgando e desfazendo enganos, sarando feridas, reconstituindo o ser e o amor de cada um, como decorre dos diálogos entre os dois pares de enamorados trocados na quarta parte da peça (versos 1171 a 1235); o que se evidencia em contraste com as intervenções do Ratinho. Fora deste universo mas também em contraste com os amores do Amo, figura-se uma realidade do amor – ou melhor, do casamento – na elite das Cortes europeias, como em Dom Duardos, pela formosura da donzela, pela sua beleza e aderência de Perindo (Pedro Laso de la Vega) ao Paço, com o perdão anunciado por Sarzedo e assim, a resolução de um episódio com o seu casamento com Natália, apontando este como o casamento ideal, o exemplo de união mais apropriado à ocasião da primeira representação da peça, enquanto que os enamorados não correspondidos devem ver as suas paixões desfazerem-se, embora ambos se possam aproximar nas suas identidades pastoris e, curando as chagas, se reencontrem numa união purificadora, purgando a dor da sua desdita.
      Contudo, como já afirmámos, pensamos que o autor terá apresentado ainda nesta peça uma outra perspectiva de casamento, naquela versão mais realista em forma de confronto com o pastoril, figurada no Ratinho, uma união que de facto seria o casamento entre um português e uma castelhana, talvez com a chegada da desposada, a castrejana para o casamento do Amo, João, pois só assim ele realizaria o seu sonho como descrito na primeira parte, aliás, no início da peça e, com a resolução do seu conflituoso amor de gato, o Ratinho assumiria também – tal como Perindo – para si próprio, a aderência do Paço (império): Sonhava que este Cupido / tendo sua satã embebida (245) / de ouro, me passava a vida... / E eu, vendo-me ferido, / que punha a mão na ferida. // E que dentro, nela achava / tanchada uma donzela. / Mais loura que o sol, e bela, / e que com ela, me alçava / lá pela Serra da Estrela [império]. // Eu estando neste reinado, / de que o Amor, rei me fazia, / sonhava que me perdia... / E que este ditoso estado / noutro pastor convertia.
      Por fim Florisbel encontra-se em condições óptimas, gozando de plena felicidade pelo encaminhamento dos filhos, estará preparado para abandonar o estado pastoril sentindo uma forte aderência do Paço: a tácita aderência de Portugal em relação ao Império dos Habsburgo. Gil Vicente criou um enredo motivado e apropriado ao momento histórico do casamento de Isabel com o imperador Carlos V.

Um universo bucólico em 1525

As figuras em estado pastoril e o ambiente idílico criado por Gil Vicente para servir de fundo a esta peça, na verdade só na sua aparência se apresenta exterior ao autor, por parecer uma decisão da figura de Florisbel que entra em cena afirmando o seu afastamento da Corte: Deixo atrás os enleos / das leis que os ricos demandam, / da privança odiosa cheos, (...) // Os trabalhos dos que mandam [exigem], / dos que com merecimento / esperam satisfação, / ver ao rei fechar a mão / abre-lhe alma o sentimento // Tem-me, filhos, esta dor / posto em pastoril estado, / tal que o tenho por melhor / que o em que me vi senhor / destes enleos cercado. // Sobejar-me paciência, / refrear o pensamento, / tende-o por grã prudência / que, ante o rei val aderência, / ante Deos merecimento. // Conhecendo esta verdade, / contentes ver‑vos queria / nesta vida, em vossa idade, / pois não tira a dignidade / a fingida vilania. (30).
Na peça, Perindo e Laurélia são ambos figuras nobres exiladas de sua Pátria que procuram a paz e o conforto num universo pastoril sob a protecção de Pã (Arcádia), – a quien dios Pan no cruel / apareje cada hora / el triunfo de laurel – e Fismonte, ele próprio um príncipe refugiado sem o saber, sente que, pela honra de servir Florisbel, deverá assumir tal identidade e servir como pastor, enquanto lastima os seus infortúnios amorosos com Natália, e esta, pela sua beleza fascinante, sente ter-lhe já a Ventura garantido a roda segura no seu estado de Senhora, pelo que está em condições de servir seu pai como pastora, porquanto Florisbel pretende que ela conserve mui grã esperança / de acabar noutro estado que não o estado pastoril. Todavia, há também a figura de João, o Ratinho, embora ele possa prender o amor – porque ele ainda pode com um gato pelo rabo – e dele fazer gato sapato, a sua castrejana não se encontra na peça devido à Censura Régia quinhentista.
Portugal, entre Junho de 1523 e meados de Fevereiro de 1525, encontra-se livre dos Habsburgo – Leonor partiu em fins de Maio e Catarina só chega em meados de Fevereiro – portanto, para Florisbel o país está longe do Paço, da Corte imperial, tomou a iniciativa de se pôr em pastoril estado, na verdade a forma poética mais conveniente para exprimir a dor, no caso, a dor causada por ver o rei (Carlos I e João III) fechar a mão aos que esperam satisfação bem merecida, e favorecer os ricos elaborando as leis que estes reclamam (demandam). Sem os Habsburgo também el-rei João III está temporariamente livre, esquivo ao poder imperial e, conforme o paradigma do ratinho definido por Gil Vicente, está pronto a servir sazonalmente outro senhor (Florisbel), mas mantendo a perspectiva de voltar ao seu lugar de origem, embora em sonho, por um casamento que o há-de transportar à Serra da Estrela, para acompanhar o império. 
Queremos dizer que este estado pastoril que Florisbel assume para si e para os seus, é um estado de espírito, bucólico, assumindo o simbolismo do universo poético ideal da Arcádia. Florisbel afasta-se da Corte (imperial), porque há temporariamente (desde a saída de Leonor até aos novos casamentos) um afastamento ocasional dos Habsburgo: e assim, para Gil Vicente, em termos figurativos, o país entrou em estado pastoril. Aliás este pastoril que se situa na sequência da peça em pastoril português, concretiza-se pelo desenvolver do ambiente criado no Natal de 1523 quando na peça apresentou uma acção dramática que se desenrola em atmosfera de idílio. Naquele fim de ano as entidades que (eles) os pastores representam, são os líderes políticos, e (elas) as pastoras, os povos das nações, e todas as figuras, eles e elas, manifestam as suas dores de amor – amores objectivamente desfasados pelo autor, – enquanto que agora em 1525 as entidades representadas pelos pastores são apenas indivíduos, e o que as figuras manifestam são as suas próprias emoções, a sua dor de amores, embora aqui em Aderência do Paço, essa dor se venha a desenvolver numa diversidade de amores, acrescentando o amor à Liberdade, ao Povo e à Pátria. Contudo as diferenças não são substanciais pelos universos culturais (históricos) que configuram, como no Natal de 1523. Agora envolvem cenários, adereços, referências, atitudes, marcações ou movimentos dos actores em cena, em algo alusivo aos Idílios (Teócrito) e as Bucólicas (Virgílio), formalizando a Arcádia, sem que sejam imitação literária – de facto nem descritivos nem literários – porque se constituem por uma acção dramática que se processa num espaço plástico condizente com aquele universo cultural clássico da Arcádia. O que também já constatámos pela análise da peça Frágua de Amor.

      (...)
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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O Teatro de Gil Vicente
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