Um universo bucólico em 1525
As figuras em estado pastoril e o ambiente idílico criado por Gil Vicente para servir de fundo a esta peça, na verdade só na sua aparência se apresenta exterior ao autor, por parecer uma decisão da figura de Florisbel que entra em cena afirmando o seu afastamento da Corte: Deixo atrás os enleos / das leis que os ricos demandam, / da privança odiosa cheos, (...) // Os trabalhos dos que mandam [exigem], / dos que com merecimento / esperam satisfação, / ver ao rei fechar a mão / abre-lhe alma o sentimento // Tem-me, filhos, esta dor / posto em pastoril estado, / tal que o tenho por melhor / que o em que me vi senhor / destes enleos cercado. // Sobejar-me paciência, / refrear o pensamento, / tende-o por grã prudência / que, ante o rei val aderência, / ante Deos merecimento. // Conhecendo esta verdade, / contentes ver‑vos queria / nesta vida, em vossa idade, / pois não tira a dignidade / a fingida vilania. (30).
Na peça, Perindo e Laurélia são ambos figuras nobres exiladas de sua Pátria que procuram a paz e o conforto num universo pastoril sob a protecção de Pã (Arcádia), – a quien dios Pan no cruel / apareje cada hora / el triunfo de laurel – e Fismonte, ele próprio um príncipe refugiado sem o saber, sente que, pela honra de servir Florisbel, deverá assumir tal identidade e servir como pastor, enquanto lastima os seus infortúnios amorosos com Natália, e esta, pela sua beleza fascinante, sente ter-lhe já a Ventura garantido a roda segura no seu estado de Senhora, pelo que está em condições de servir seu pai como pastora, porquanto Florisbel pretende que ela conserve mui grã esperança / de acabar noutro estado que não o estado pastoril. Todavia, há também a figura de João, o Ratinho, embora ele possa prender o amor – porque ele ainda pode com um gato pelo rabo – e dele fazer gato sapato, a sua castrejana não se encontra na peça devido à Censura Régia quinhentista.
Portugal, entre Junho de 1523 e meados de Fevereiro de 1525, encontra-se livre dos Habsburgo – Leonor partiu em fins de Maio e Catarina só chega em meados de Fevereiro – portanto, para Florisbel o país está longe do Paço, da Corte imperial, tomou a iniciativa de se pôr em pastoril estado, na verdade a forma poética mais conveniente para exprimir a dor, no caso, a dor causada por ver o rei (Carlos I e João III) fechar a mão aos que esperam satisfação bem merecida, e favorecer os ricos elaborando as leis que estes reclamam (demandam). Sem os Habsburgo também el-rei João III está temporariamente livre, esquivo ao poder imperial e, conforme o paradigma do ratinho definido por Gil Vicente, está pronto a servir sazonalmente outro senhor (Florisbel), mas mantendo a perspectiva de voltar ao seu lugar de origem, embora em sonho, por um casamento que o há-de transportar à Serra da Estrela, para acompanhar o império.
Queremos dizer que este estado pastoril que Florisbel assume para si e para os seus, é um estado de espírito, bucólico, assumindo o simbolismo do universo poético ideal da Arcádia. Florisbel afasta-se da Corte (imperial), porque há temporariamente (desde a saída de Leonor até aos novos casamentos) um afastamento ocasional dos Habsburgo: e assim, para Gil Vicente, em termos figurativos, o país entrou em estado pastoril. Aliás este pastoril que se situa na sequência da peça em pastoril português, concretiza-se pelo desenvolver do ambiente criado no Natal de 1523 quando na peça apresentou uma acção dramática que se desenrola em atmosfera de idílio. Naquele fim de ano as entidades que (eles) os pastores representam, são os líderes políticos, e (elas) as pastoras, os povos das nações, e todas as figuras, eles e elas, manifestam as suas dores de amor – amores objectivamente desfasados pelo autor, – enquanto que agora em 1525 as entidades representadas pelos pastores são apenas indivíduos, e o que as figuras manifestam são as suas próprias emoções, a sua dor de amores, embora aqui em Aderência do Paço, essa dor se venha a desenvolver numa diversidade de amores, acrescentando o amor à Liberdade, ao Povo e à Pátria. Contudo as diferenças não são substanciais pelos universos culturais (históricos) que configuram, como no Natal de 1523. Agora envolvem cenários, adereços, referências, atitudes, marcações ou movimentos dos actores em cena, em algo alusivo aos Idílios (Teócrito) e as Bucólicas (Virgílio), formalizando a Arcádia, sem que sejam imitação literária – de facto nem descritivos nem literários – porque se constituem por uma acção dramática que se processa num espaço plástico condizente com aquele universo cultural clássico da Arcádia. O que também já constatámos pela análise da peça Frágua de Amor.
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