O mythos em Regateiras de Lisboa
Em 13 de Dezembro de 1521 morre el-rei Manuel I de Portugal, deixa viúva Leonor de Áustria (n.1498, Leonor de Habsburgo, irmã de Carlos V) que, antes de se casar com o rei Venturoso (em 1518), havia anos que tinha sido prometida em casamento ao filho deste, o herdeiro da Coroa, o príncipe João (n.1502) futuro rei de Portugal.
Com a morte de seu pai, no jovem rei João III, renasce o desejo de cortejar a também jovem viúva sua madrasta. E os seus avanços, no sentido da realização do desejo, tornam-se realidade visível a todos os que o cercam, como também se evidencia aos olhos populares. Na verdade, sabemos pelos cronistas, que o desejo foi levado à prática, pois do povo à nobreza, das estruturas locais do Poder às nacionais e aos conselheiros do reino, ao ponto de estes até prestarem esclarecimentos sobre o interesse da Nação nessa ligação, todos comentaram o caso e houve propostas para que o novo rei, João III, se casasse com Leonor de Habsburgo sua madrasta.
O duque de Bragança, elaborou uma longa missiva em seu nome e em nome das cidades de Portugal, descrevendo e equacionando a situação (emocional, política, económica e social) respeitante a este caso, propondo o casamento do rei com a jovem viúva de seu pai, dizendo a certo passo:
…pedimos a V. A. que deixe mais dias pascer as bestas das suas carregas, e vos ponhais de novo a cuidar considerando que para conservação da república destes reinos de Portugal fostes nascido, e que mandando a Rainha, mandais a maior senhora da Cristandade fora de vossa poder, a qual senhora é louvor e honra de vossas províncias, favor e abrigo de vossos povos, paz de vosso estado, muito formosa, muito moça e bem inclinada, por sinal tão amada de todos que não é nada os preços que a levam, mas os desejos que deixa. (…) V. A. há de considerar que todas estas adversidades com que a fortuna nos ameaça causou vosso pai por casar por conselho de poucos, o qual deveis de curar com seu contrário, casando por conselho de muitos, ele casou com a mulher alheia, e V. A. deve casar com aquela que sempre por justa razão e no coração dos vossos súbditos sempre foi vossa, não senhor com tenção de serdes restituído a ela mas para vossos reinos restituirdes por vós (…) e pedimos por seu amor que V. A. case com a Rainha nossa senhora …
[ Nota: Pequeno trecho transcrito da longa Carta do duque Jaime de Bragança transcrita na Crónica de el-rei D. João III, de Francisco de Andrade. ]
As Crónicas transcrevem, além desta carta do duque de Bragança, de que apresentamos um muito breve trecho, algumas das implicações – a exigência do imperador insistindo que Leonor fosse para Castela levando a infanta Maria sua filha e de el-rei Manuel I – que envolveram esta possibilidade (proibida) do casamento em desobediência ao imperador Carlos V, e descrevem sumariamente alguns dos acontecimentos que a jovem viúva teve de enfrentar, aqueles que a licença permitiu que tivessem sido relatados pelos cronistas e, ainda assim, os que mais se evidenciaram sem comprometer os actores principais pelas cenas realmente sucedidas.
Cerca de um ano depois da morte de Manuel I, apresenta-se a el-rei João III de Portugal, em 12 de Novembro de 1522, o doutor Cabreyro, ouvidor do Conselho Real de Carlos I (Carlos V), que vem com uma nobre comitiva com a função expressa de acompanhar a realeza, a rainha Leonor à presença do seu irmão Carlos de Habsburgo, rei e imperador. Da comitiva que acompanha o doutor Cabreyro, para além do contingente da Guarda Real de Carlos (para protecção de Leonor), faz parte o Conde de Cabra (Diego Fernandez de Córdoba e Montemayor, que morreu em 1525) e o Bispo de Córdova (Alfonso Manrique de Lara y Sólis, que, logo depois, 10 de Setembro de 1523, foi nomeado Inquisidor Geral e do Conselho Geral do Reino), ficando estes em Badajoz, onde vão permanecer desde o início de Novembro de 1522 – esperando a entrega de Leonor de Habsburgo – até fins de Maio de 1523 ou início de Junho, quando uma comitiva portuguesa composta pelo duque de Bragança, pelo barão do Alvito e pelos infantes irmãos do rei, bem como o doutor Cabreyro e seus homens de apoio, fazem a entrega da viúva de Manuel I à comitiva que os espera em Badajoz. Ora, entre Novembro de 1522 e finais de Maio de 1523 decorreram mais de seis meses.
Portanto, é importante apresentar alguma informação sobre os acontecimentos que, segundo os cronistas, pretendem justificar uma tão grande demora, cuja primeira causa, reside na instabilidade política em Espanha, as guerras que proliferam no território com revolta contra o domínio estrangeiro (flamengo), que adquirem aspectos e objectivos regionais, com diferentes motivações: (a) a revolução das Comunidades de Castela; (b) a revolta das Germanias em Valência, e logo em Maiorca. Porém, com o regresso do imperador a Espanha em 16 de Julho de 1522, após resolvidas a seu favor a maior parte das guerras, e realizada alguma distribuição do poder pela nobreza local, impõe-se o regresso de Leonor de Habsburgo a Espanha.
Logo após a morte de Manuel I, contam as Crónicas que Leonor, sua viúva, pretendia ir para o convento de Odivelas, mas que, por insistência de el-rei João III, ficou hospedada em Xabregas numas casas de Tristão da Cunha e, muito pouco tempo depois, (alguns dias) passou a ser hóspede em casa do duque de Bragança, onde haveria de permanecer durante todo o ano de 1522. Ora, nessas casas, João III foi visita constante da sua madrasta.
Com o surgir de uma nova peste em Lisboa no final do ano de 1522, a Corte portuguesa desloca-se (em Janeiro 1523) para o Lavradio (Barreiro), onde permanecerá até meados do mês de Março. E, com a Corte seguiu a jovem viúva Leonor de Habsburgo e muitos cortesãos. Mais tarde, com o agravamento da peste em Lisboa, a Corte portuguesa dirige-se para Almeirim, onde deverá permanecer até final de Maio. Porém, Leonor de Habsburgo fica pelo caminho, em Muge.
Desde a sua saída de Lisboa que o duque Jaime de Bragança e também Diogo Lobo, barão do Alvito, seguem na comitiva da Corte portuguesa acompanhando as damas, Isabel de Portugal, Leonor de Habsburgo…
Ora, como já referimos, em Lisboa, em casa do duque de Bragança, as visitas do rei à sua madrasta vinham sendo cada vez mais frequentes e, como eram bem conhecidas as propostas para o seu casamento, cresceram suspeitas sobre o carácter de tais visitas, e as suspeitas foram talvez empoladas e assim tornadas públicas por Cristóvão Barroso, embaixador castelhano e encarregado de negócios, que desencadeou um grande escândalo.
Todavia, foi durante o percurso da Corte do Lavradio para Almeirim em meados de Março, que aumentou o alvoroço já levantado por Cristóvão Barroso, afirmando-se até, em correspondência do embaixador da Polónia, que Leonor estava grávida. Dizem as Crónicas que em consequência do escândalo e da insistência de Barroso, que Leonor de Habsburgo (com suas damas) se viu obrigada a ficar em Muge (Salvaterra de Magos), isolada da gente da Corte portuguesa e, daqui só saiu perto do fim de Maio de 1523, seguindo então para Badajoz ao encontro da comitiva castelhana que a esperava havia alguns meses, desde Novembro de 1522.
O tempo da acção dramática de Regateiras de Lisboa, formulando o mythos, surge definido pelos “momentos” decorridos antes da Corte portuguesa sair de Lisboa – com Leonor de Habsburgo – para o Lavradio em Janeiro de 1523. Contudo, a peça escrita por Gil Vicente, terá sido concebida, idealizada e escrita (construída), ainda em 1523, portanto, contando o autor com todo o universo do sucedido entre os finais de 1522 e os primeiros meses de 1523, e esta será a primeira peça representada em 1524, talvez no Carnaval ou antes.
O lugar de referência onde se desenvolve a acção dramática da peça, apresenta o figurado escândalo público na Ribeira (Paço) transposto para o Mercado da Ribeira de Lisboa (Ribeira velha, na Alfama ribeirinha), elaborado a partir da realidade do relacionamento entre el-rei e a sua madrasta.
Este caso amoroso de el-rei João III conclui-se com a partida de Leonor de Habsburgo que chega a Medina del Campo em 15 de Junho de 1523 para o encontro com seu irmão Carlos. Pouco tempo depois da partida de Leonor para Espanha, a Corte portuguesa prossegue para norte, a caminho de Tomar, onde o rei haverá de tomar posse como Grão-Mestre da Ordem de Cristo, e onde, segundo se sabe, assistirá à representação da peça Inês Pereira.
A infanta Maria filha de Leonor de Habsburgo e de Manuel I, que completa os dois anos de idade em 8 de Junho de 1523, fica em Portugal por decisão deste reino, contrariando a vontade da mãe e de seu irmão, o imperador Carlos V.
Notas:
Em "Carlos V, el César y el hombre", Manuel Fernández Alvarez afirma que a insistência na saída de Leonor de Portugal se deveu aos rumores que se estendiam pela Europa, sobre a relação amorosa de el-rei com a sua madrasta, e cita a carta da embaixador da Polónia com a suspeita da gravidez.