E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
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Sobre o "Auto da Feira"
Feira (das Graças), da Banca Alemã (Fugger)
   
      O conflito entre os Valois e os Habsburgo adensou-se com o espoletar do confronto do imperador com o novo Papa eleito em 1523, pelas atitudes tomadas por Clemente VII (um Medici), ao mudar os banqueiros da Igreja, desfazendo-se da banca dos Fugger chefiada por Jacob Fugger o rico – que rege nas praças de Anvers (Antuérpia, Flandres) e Medina (Medina del Campo, a mais importante Feira de Espanha) as feiras que tem – figurado na personagem deus Mercúrio na peça, o banqueiro que tem como seu Cruzado e Cavaleiro Mor o imperador Carlos V, de quem faz seu Mercador Mor – assim muito bem figurado na personagem Tempo (deus Cronos, um titã) – porque o Tempo tudo tem.

  [
Tempo]   Em nome daquele que rege nas praças
               de Anvers e Medina as feiras que tem,  
               começa-se a feira chamada, das Graças,  
               a honra da Virgem parida em Belém.
 

     O Auto da Feira da Ladra, (Escrivães do Pelourinho) também obra criada (e escrita) por Gil Vicente, terá sido representado na Corte portuguesa na primavera de 1527, de facto em Lisboa. Enquanto que o Auto da Feira das Graças (cujo título é conhecido por Auto da Feira) do qual apresentamos agora a análise foi representado à Corte portuguesa em Évora no Natal de 1524.

    ...sem alternativas senão a guerra, concluindo o Serafim: que quem tem guerra com Deus (Mercúrio / Fugger) / não pode ter paz com o mundo.

 
      Em Feira, Natal de 1524 como se comprova, representam-se os conflitos criados pelas decisões firmes de Clemente VII (desliga-se da Banca dos Fugger) em confronto com o Império e os seus meios financeiros e políticos, tanto no seio da Igreja como na Europa, o seu reflexo nas ideologias (na religião) e na luta pelo Poder, e assim, pelo TEMPO (que tudo tem) começa-se a feira chamada das Graças;
        Note-se que na apresentação Mercúrio se refere à inquietação causada pelo alinhamento dos planetas (1524) e de tudo o que daí se adivinha, os medos causados por muitos aventureiros da adivinhação, dando o autor os necessários ensinamentos sobre a questão, dizendo que a previsão do futuro é sempre uma treta e, ainda durante o Auto, é referido o jubileu, ano do jubileu (1525) que se inicia, no Natal de 1524, 1525 pelo nascimento. E todo o seu mythos na acção dramática demonstra a sua datação em 1524, como evidencia a sua análise.
       Stanislav Zimic notou que, pela acção, o auto seria anterior a Maio de 1527.

     Apresentamos a seguir a parte inicial do Auto da Feira, mas apenas como prova do que afirmámos. Nos versos do prólogo, em palavras de Mercúrio, Gil Vicente faz uma boa paródia aos mágos, aos astrólogos e a outros "leitores dos astros" — os matemáticos, Johannes Stoeffler (1452-1531), falando da Cátedra da sua Universidade, levou mais de duas mil pessoas a abandonar Londres em Fevereiro de 1524 — que durante todo o ano ainda continuavam a amedrontar o povo, pois vinham dizendo que tinha havido apenas um erro de cálculo, e que o fim do mundo iria suceder a muito curto prazo. No Auto dos Físicos do mesmo ano, há também referência ao alinhamento de planetas.
      Em Portugal os astrónomos e matemáticos (Simão Fernandes, Francisco de Melo e outros), acalmavam as populações repondo a verdade. Com certeza por ser mais frequentador da Corte e próximo de Gil Vicente, a acção de Francisco de Melo é sublinhada no prólogo do Auto da Feira.
       Aqui fica o prólogo do Auto da Feira com Gil Vicente, o autor como actor, com as palavras nos versos que, por si só, demonstram a datação deste Auto em 1524.

Auto da Feira de Gil Vicente. Natal de 1524.
[Prólogo]

MERCÚRIO:

Pera que me conheçais
e entendais meus partidos,
todos quantos aqui estais
afinai bem os sentidos
mais que nunca, muito mais.

Eu sou estrela do céu,
e depois vos direi qual
e quem me cá decendeu,
e a quê, e todo o al
que me a mi aconteceu.

E porque a estronomia
anda agora mui maneira,
mal sabida e lisonjeira,
eu à honra deste dia
vos direi a verdadeira.


Muitos presumem saber
as operações dos céus,
e que morte hão de morrer,
e o que há de acontecer
aos anjos e a Deos.

E ao mundo e ao diabo!
E que o sabem tem por fé...
E eles, todos em cabo,
terão um cão polo rabo
e nam sabem cujo é. 

E cada um, sabe o que monta
nas estrelas que olhou, 
e ao moço que mandou,
nam lhe sabe tomar conta
dum vintém que lhe entregou. 


Porém quero-vos pregar,
sem mentiras nem cautelas,
o que per curso d’estrelas
se poderá adevinhar
pois no céu naci com elas.

E se Francisco de Melo,
que sabe ciência avondo,
diz que o céu é redondo
e o sol sobre amarelo...
Diz verdade, não lho escondo.

Que se o céu fora quadrado
nam fora redondo, senhor...
E se o sol fora azulado
d’azul fora a sua cor
e nam fora assi dourado.


E porque está governado
per seus cursos naturais,
— neste mundo onde morais —
nenhum homem aleijado,
se for manco, e corcovado..., 
não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes
vos trazem tam compassados...,
que todos quantos nacestes,
se nacestes e crecestes, 
primeiro fostes gerados.

E que fazem os poderes
dos sinos resplandecentes?
— Quê? —
Fazem que todalas gentes
ou são homens ou molheres 
ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum
influe vida contina...,
a morte de cada um
é aquela de que se fina
e nam doutro mal nenhum.


Outrossi, o terremoto,
que às vezes causa perigo,
faz fazer ao morto voto
de nam bulir mais consigo
quanto a de seu próprio moto.

E a claridade encendida
dos raios piramidais
causam sempre nesta vida...,
que quando a vista é perdida
os olhos são por demais.

E que mais quereis saber
desses temporais, e disso,
se nam que, se quer chover
está o céu pera isso
e a terra pera a receber?



A lua tem este jeito:
vê que clérigos e frades
já nam tem ao céu respeito...,
mingua-lhes as santidades
e crece-lhes o proveito.


Et quantum ad stella Mars speculum belli et Venus
regina musicae secundum Joannes Monteregio:


Mars planeta dos soldados
faz nas guerras conteúdas,
em que os reis são ocupados,
que morrem de homens barbados 
mais que molheres barbudas.

E quando Vénus declina
a retrogada em seu cargo...,
nam se paga o desembargo
no dia que se ele assina
mas antes per tempo largo.


Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer,
Capricornius positus in firmamento coeli:


E quanto ao Touro e Carneiro,
são tão maus de haver agora,
que quando os põe no madeiro
chama o povo ao carneceiro
senhor, c’os barretes fora.

Depois do povo agravado,
que já mais fazer nam pode,
invoca o sino do bode
Capricórnio chamado
porque Libra nam lhe acode.

E se este nam hás tomado,
nem Touro, Carneiro assi,
vai-te ao sino do pescado,
chamado Picis em latim,
e serás remediado.

E se Picis nam tem ensejo,
porque pode nam no haver...,
vai-te ao sino do cranguejo
sinum Cancer Ribatejo
que está ali a quem no quer.



Sequuntur mirabilia Jupiter rex
regum dominus dominantium:

Jupiter, rei das estrelas,
deos das pedras preciosas
mui mais preciosa que elas...,
pintor de todalas rosas 
rosa mais fermosa delas

É tam alto seu reinado
influência e senhoria,
que faz per curso ordenado
que tanto val um cruzado
de noite como de dia.

E faz que uma nau veleira,
mui forte muito segura,
que inda que o mar não queira
e seja de cedro a madeira,
nam preste sem pregadura.



Et quantum ad duodecim domus zodiacus
sequitur declaratio operationem suam:


No zodíaco acharão
doze moradas palhaças
onde os sinos estão,
no Inverno e no Verão
dando a Deos infindas graças.

Escutai bem, nam durmais,
sabereis per conjeituras
que os corpos celestiais
nam são menos nem são mais
que suas mesmas granduras.


E os que se desvelaram,
se das estrelas souberam,
foi que a estrela que olharam
está onde a puseram
e faz o que lhe mandaram.

E cuidam que Ursa Maior,
Ursa Minor e o Dragão
e Lepus que tem paixão
porque um corregedor
manda enforcar um ladrão.


Nam porque as costolações
nam alcançam mais poderes
que fazer, que os ladrões
sejam filhos de molheres,
e os mesmos pais, barões.

E aqui quero acabar.
E pois, vos disse até aqui
o que se pode alcançar,
quero-vos dizer de mi 
e o que venho buscar.



Eu sam Mercúrio, senhor
de muitas sabedorias
e das moedas reitor,
e deos das mercadorias,
nestas tenho meu vigor.

Todos tratos e contratos,
valias, preços, avenças,
carestias e baratos
ministro suas pertenças,
até as compras dos sapatos.


E, porquanto nunca vi
na corte de Portugal
feira em dia de Natal,
ordeno uma feira aqui
pera todos em geral.

Faço mercador-mor
ao Tempo, que aqui vem,
e assi o hei por bem
e nam falte comprador,
porque o Tempo tudo tem.



[ I - Parte ]

(...)

(Ler ebook...)

eBook   Auto da Feira
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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