... a nossa leitura recordando, tanto pelo espírito como pela letra, o que nos parece que o autor quis deixar registado nestes últimos sete versos:
Tal como Jesus no útero da Virgem, também o corpo de Cristo na hóstia foi preparado por mistério divino e, assim como esteve guardado no útero de sua mãe, assim o seu Corpo - na hóstia, - a iguaria, estará guardada no viril, onde se encontra protegida (mui coberta) pela imagem da Virgem, do Anjo Gabriel e coberta pela pomba do Espírito Santo na Custódia de Belém, o Sacrário da Virgem.
Pois como todos nós sabemos pela imagem fotográfica, ou talvez melhor ainda, por alguma descrição feita da Custódia de Gil Vicente, esta foi pelo mesmo autor, dedicada à Virgem da Anunciação. Como podemos ver, a sua imagem foi colocada ao nível dos Apóstolos, do lado direito, e com uma simetria ao eixo vertical da peça, do lado esquerdo, foi colocada a imagem do Anjo da Anunciação, o Arcanjo Gabriel com o ceptro na mão, ambos protegidos pelas torres dos anjos músicos, remetendo assim o autor para a ideia do nascimento de Cristo.
Isso mesmo expõe no seu Auto quando diz que Cristo, a iguaria, que na mente divinal foi guisada, pois assim está referir todo o mistério desde a ideia da sua vinda ao mundo, da sua presença no útero de sua mãe, do seu nascimento: a iguaria foi por mistério preparada no Sacrário Virginal. Ou do mesmo modo se pode ler na associação: pelo mistério da eucaristia preparada, a hóstia será depositada (coberta), no Sacrário da Virgem, a Custódia de Belém.
A iguaria resultante - a fruta deste jantar - é a hóstia consagrada, muito bem coberta, bem protegida, tanto como o corpo de Deus ainda no ventre de sua mãe protegido pelo Espírito Santo. Pois assim ficámos a saber pela Visitação que a Virgem fez a sua irmã Isabel, a mãe de João Baptista, assim também na Custódia a imagem da Virgem tem uma pomba por cima, e assim também o corpo de Cristo no viril da Custódia, estará coberto por uma cúpula que serve de base ao compartimento onde se encontra a pomba do Espírito Santo, que assim o cobre e protege.
Da divindade cercada, pois tal como Cristo se rodeou pelos seus Apóstolos, assim está a hóstia na Custódia, cercada pelas imagens dos Apóstolos, pela Virgem, pelo Arcanjo Gabriel, e mais acima pelos profetas, e por toda a hierarquia angélica, toda a divindade da Igreja.
Por fim, a fruta deste jantar, o Corpo de Cristo, constituído pela hóstia depois de consagrada: assim como Cristo crucificado, foi (é) dado a Deus, padre eterno, em oferta, também a hóstia após a sua consagração, preparada pelo mistério da eucaristia é depositada na Custódia, sendo assim dada a Deus pai TodoPoderoso, o padre eterno, pois a sua representação com o planeta na mão, dominando e regendo tudo e todos, ocupa o lugar (espaço) mais alto na Custódia. E nesta como na estrofe, a Virgem tem um lugar de destaque: o Sacrário Virginal.
Completaram-se os sete versos da estrofe que descreve a Custódia de Belém, concretizando o seu significado, o mistério divino da Santíssima Trindade, Deus pai, Espírito Santo, e Cristo na hóstia. Todavia, mais importante para o sentido do Auto, é o enlace das duas estrofes, é o guisado da iguaria, o sacrifício de Cristo, pois só após o guisado é que pode surgir o fruto do jantar.
[transcrito (p.179) de Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion... de Noémio Ramos