[Tempo] …Sabes tu, Entendimento, qual foi a cobiça que dividiu as terras, e que primeiro achou este pronome Meu? O malicioso Poder, na minha primeira idade, quando tu em os homens tinhas fraco juízo. E este Poder, vendo a simplicidade de tantos povos, atribuiu a si Adoração, Estado, Senhorio e Posse; como se Deus criara o Mundo para sua particular causa. E onde a lei deste Poder diz: “Querendo assim o uso e as humanas necessidades, as gentes entre si constituíram lei”. Aquele uso, sabes como hás de entender? “Querendo a poderosa força, as gentes obedeceram à sua lei”. Cuidas que foi nesta constituição, plebiscita etc.? Somente principum placita. E sabes quem confirma esta verdade? Justino, que foi ante Justiniano, dizendo que: antes da lei escrita, a vontade dos príncipes era tida por lei. E se este Poder cobiçoso, tivera tanta capacidade quanto desejo tinha para si reter todas as possessões particulares, nunca desistira da posse delas; e quando mais não pôde, chamou-se “cabeça do povo” para levar as natas de seus frutos. Donde se causaram servidões, cativeiros, tributos e todas as outras cousas ao direito natural contrárias: multiplicando as leis com a posse. Porque nas muitas está muita execução de penas, e misericórdia de as perdoar: que é todo o seu Estado. E então vós outros que vos prezais de juristas trazeis em provérbio: “Mais são os casos que as leis”, como se elas não multiplicassem os casos: e os casos não a elas. Queres disso a experiência? Nunca se fez lei para evitar um dano que não fosse a serpente hidra: onde se corta uma cabeça, ali nascem sete. A malícia humana há de arrebentar por alguma parte: solda o que quiseres, porque quanto mais leis, mais doutrina para erros. Donde o Italiano tirou este provérbio: Fatta la legge, pensata la malizia.
João de Barros - Ropicapnefma, 1532. Edição INIC, 1983. (p.75).
No texto o autor (o pecador) fala pelo Entendimento, que, aliado à Vontade e com o apoio do Tempo [História], se confronta com a Razão.