Cassandra corresponde sem dúvida à profetiza com o mesmo nome na mitologia grega, filha de Príamo rei de Tróia, possui o dom de prever o futuro, que lhe foi concedido por Apolo (o deus grego que é também o Cristo da Renascença), contudo, com a virgindade a que se sujeita, com este dom da profecia também lhe foi concedido o infortúnio de nunca ninguém acreditar nas suas profecias…
Cassandra corresponde a uma tradição ibérica (?), que se reflecte na General Estória de Afonso X, onde se expressa a profecia de que a partir dela havia de nascer o filho de Deus — um novo ramo na religião — agora a partir de Erasmo.
Cassandra, irmã de Páris, está com (Paris) Luís XII de França, em relação a factos concretos, a acontecimentos da História da Europa, figura o conciliábulo de Pisa (clivagem na Igreja) na acção dramática, bem como as ideologias em causa na luta entre o rei de França e o Papa Júlio II, entre a ideia de uma Igreja dirigida por uma assembleia em Concílio — conciliarismo — ou uma Igreja governada por um Poder centralizado, dirigida apenas por um homem, como sucessor de Pedro.
Cassandra apresenta-se como a troiana (francesa) que profetisa a destruição de todos os seus e de Tróia (a derrota da França), por seu irmão Páris (Luís XII) raptar e se apoderar de Helena (a Igreja, convocando o Concílio de Pisa), mulher de Menelau (Júlio II) rei da Grécia (o Estado Pontifício).
Cassandra figura o pensamento de Erasmo pela ideologia exposta no Enquiridion (1503), a liberdade de pensamento, a liberdade de interpretar (aqui fantasiando) as Escrituras. E a partir dela haverá de nascer Jesus, está nascendo uma nova ideologia religiosa, um outro cristianismo liderado por Erasmo ou por aquela sua Estultícia, todavia, ninguém (na época, 1511) acredita nesta profecia.
Cassandra figura ainda o pensamento de Erasmo pelo exposto no Elogio da Loucura (1511), pois, como sublinham no Auto a generalidade dos seus interlocutores, ela está louca, fantasiando a Bíblia, mas ela está bem sabedora, tal como a oradora (Moria) de Erasmo, senhora de si exprime a sua loucura. E, como Erasmo afirma, o que escreveu neste livro é o mesmo que escreveu no Enquridion, mas agora zombando da situação, assim também Cassandra está louca ao ponto de mangar com aquela proposta de aliança com Salomão: a aliança entre o reformismo — ainda a ideologia de Erasmo — e a Igreja Romana da nova Basílica, o Templo de Apolo.
Cassandra figura também uma poderosa crítica à ideologia de Erasmo — também exposta em Elogio da Loucura, — para quem a mulher é o pecado, e a fonte de muitos males (todos os do casamento), pois no Auto, Gil Vicente inverte a situação que foi exposta por Erasmo, no que respeita às relação entre o homem e a mulher na sua união matrimonial, dignificando a mulher em contraposição ao que ficou escrito, de novo, no Elogio da Loucura onde, para acreditar na mulher, para admitir o casamento e ter uma vida conjugal, um homem só pode ser néscio ou estulto… Talvez por esta razão — por Gil Vicente figurar quase sempre nas suas obras uma crítica a Erasmo — se não tivesse ainda relacionado também Sibila Cassandra com o pensamento daquele religioso de Roterdão.
Cassandra foi caracterizada por Gil Vicente figurando aquele soberbo orgulho de Erasmo na pele de Moria (a Loucura), e enquanto ideal, nesta acção dramática, ela representa o próprio religioso em toda a sua grotesca autocontemplação narcísica [ uma expressão de Stanislav Zimic, em O sentido alegórico do Auto de Sibila Cassandra de Gil Vicente, Actas do Colóquio em torno da obra de Gil Vicente, Lisboa 1988. ] (em Romagem dos Agravados, FREI NARCISO figura Erasmo) e o pecado da soberba é o que mais se evidencia na afirmação de uma orgulhosa liberdade de pensar e exprimir a sua visão do mundo (um outro Jesus) da qual não quer abdicar.
Cassandra, em suma, é a Mulher, mas sobretudo a donzela bela daquele poema que o autor lhe dedica, antes do final, a liberdade de pensar por si mesma e de criar — tal como a Arte, — com vontade própria, na perspectiva humana de um futuro melhor, com mais dignidade e humanidade, e coisa mais bela não haverá. A esta Cassandra, Gil Vicente presta a maior homenagem, como bem denota o poema.
Cassandra foi a figura ideal — a melhor e mais indicada — encontrada por Gil Vicente para representar a realidade histórica que pretendia figurar no seu Auto. Ela é a figura sobre a qual se centra toda a acção dramática, o núcleo de toda a trama e de todos os significados do Auto, o âmago do conteúdo e da sua ideologia.