Retórica e Drama  Arte e Dialéctica
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Líderes políticos e ideólogos
Ideologia e História da Europa
Teatro 1502-1536
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Lendo o "Auto de Sibila Cassandra"
NOTA - 1:
  O Auto de Sibila Cassandra tem sido erradamente datado de 1513 com os seguintes argumentos: (a) que o vilancete final seria um incitamento à conquista de Azamor (1513); e (b) que Gil Vicente teria sido influenciado por El Guarino Mezquino de Andrea da Barberino, publicado em Sevilha por Jocob Cromberger.

NOTA - 2:
 
Para ler de facto esta peça de Gil Vicente, além de ser necessário ter lido bem as obras de Erasmo, deve-se estudar Le Concile Gallican de Pise-Milan, Documents Florentins (1510-1512), documentação publicada por Augustin Rhnaudet -1922 - Universidade de Grenoble.
      O Auto de Sibila Cassandra foi criado entre Outubro e os primeiros dias de Novembro de 1511 e representado, na Corte Portuguesa, no Natal desse mesmo ano.

        Na História da Europa que Gil Vicente dramatiza, Sibila Cassandra  antecede o Auto do Velho da Horta. Este foi representado também na Corte Portuguesa em 1 de Novembro de 1512, dia de Todos-os-Santos, figurando a inauguração da pintura de Miguel Ângelo na abóbada da Capela Sistina, nesse mesmo dia.
Algumas notas sobre Sibila Cassandra
(uma base a desenvolver)

     ...a França, no norte de Itália, ocupava Milão e grande parte de condados, ducados e outros feudos independentes ou dependentes do Imperador. Num esforço para unir a Itália, Júlio II - tal como muitos dos senhores dos territórios ocupados - pretendia expulsar os franceses, e para isso seria criada a Santíssima Liga, que viria a ser formalmente constituída em 4 de Outubro de 1511, como uma aliança (1) da Espanha (que detinha todo o sul da Itália - Nápoles - e a Sicília), (2) da República de Veneza e (3) do Estado Pontifício, a que pouco mais tarde, mas já em meados de Novembro, cumprindo a promessa do ano anterior, após receber a oferta pelo Papa de uma Rosa de Ouro, se juntaria (ainda com reservas) Henrique VIII de Inglaterra, mas a confirmação desta última adesão pode ter chegado a Portugal já em Dezembro de 1511.
       Estes acontecimentos históricos foram tratados por Gil Vicente no Auto de Sibila Cassandra, representado no Natal de 1511, um auto onde o mythos é composto pelas origens do conflito e, em parte, (...) da recém formada Santa Liga de 1511 contra a França e seus aliados.

      No fim Auto, o  bailado de terreiro de três por três (...), ganha alguma independência, com uma maior força guerreira para, por fim, se transformar numa força militar para o vilancete A la guerra
     Assim, se representa a situação de conflito que se mantém entre a Igreja (Latrão), pelos seus fundamentos na doutrina religiosa de um sucessor de Pedro com as chaves do Céu — representados pelo Estado Pontifício e Júlio II — e a ideia do conciliarismo reposta por Luís XII, rei de França (Pisa), mas também o reformismo requerido e há muito adiado.
     Representa-se no bailado uma situação de guerra declarada, lida como expulsão dos franceses de Itália, com a formação da Santíssima Liga, pues los ángeles sagrados / a socorro son en terra. A la guerra!


Vilancete final - Êxodo


A la guerra

caballeros esforzados
pues los ángeles sagrados
a socorro son en tierra…
A la guerra!

Con armas resplandecientes
vienen del cielo volando
Dios y hombre apellidando
en socorro de las gentes.

A la guerra
caballeros esmerados
pues los ángeles sagrados
a socorro son en tierra…
A la guerra!

      O bailado de terreiro de três por três
(no caso, 3 contra 3) constitui pois uma representação da guerra, pois como se pode confirmar, com a Santíssima Liga em formação:
      São ainda em Novembro de 1511, França, Alemanha e Suiça, os três de um lado, e os três do outro, o Papa (Estado Pontifício), Espanha e Sereníssima República Veneziana.

      (...) Gil Vicente terá com toda a certeza destacado mais o momento da cantiga, feita e ensoada pelo autor:
Muy graciosa es la doncella…,

Sibila Cassandra
       Entre os autos que agrupámos numa saga da religião, Sibila Cassandra é um dos mais importantes e, em termos de ideologia, prossegue o confronto já exposto no Auto da Alma, manifestando agora algumas consequências menos perceptíveis das ideias de Erasmo de Roterdão no seu confronto com o Papa pela reforma da Igreja. Bem visível no auto está a figuração rigorosa da situação política na Europa em 1511. Contudo, é um auto complexo na figuração das ideologias, porque, se na generalidade faz o elogio do pensamento (já publicado) de Erasmo - a liberdade de pensamento e sua expressão - em aspectos tão importantes como a dignidade da mulher, submete as ideias do religioso de Roterdão a uma crítica muito rigorosa, focada com precisão nos pormenores mais gravosos publicados no Manual do militante cristão, o Enquiridion, e mais ainda no Elogio da Loucura.
      Cassandra corresponde sem dúvida à profetiza com o mesmo nome na mitologia grega, filha de Príamo rei de Tróia, possui o dom de prever o futuro, que lhe foi concedido por Apolo (o deus grego que é também o Cristo da Renascença), contudo, com a virgindade a que se sujeita, com este dom da profecia também lhe foi concedido o infortúnio de nunca ninguém acreditar nas suas profecias…
      Cassandra corresponde a uma tradição ibérica (?), que se reflecte na General Estória de Afonso X, onde se expressa a profecia de que a partir dela havia de nascer o filho de Deus — um novo ramo na religião — agora a partir de Erasmo.
      Cassandra, irmã de Páris, está com (Paris) Luís XII de França, em relação a factos concretos, a acontecimentos da História da Europa, figura o conciliábulo de Pisa (clivagem na Igreja) na acção dramática, bem como as ideologias em causa na luta entre o rei de França e o Papa Júlio II, entre a ideia de uma Igreja dirigida por uma assembleia em Concílio — conciliarismo — ou uma Igreja governada por um Poder centralizado, dirigida apenas por um homem, como sucessor de Pedro.
      Cassandra apresenta-se como a troiana (francesa) que profetisa a destruição de todos os seus e de Tróia (a derrota da França), por seu irmão Páris (Luís XII) raptar e se  apoderar de Helena (a Igreja, convocando o Concílio de Pisa), mulher de Menelau (Júlio II) rei da Grécia (o Estado Pontifício).
      Cassandra figura o pensamento de Erasmo pela ideologia exposta no Enquiridion (1503), a liberdade de pensamento, a liberdade de interpretar (aqui fantasiando) as Escrituras. E a partir dela haverá de nascer Jesus, está nascendo uma nova ideologia religiosa, um outro cristianismo liderado por Erasmo ou por aquela sua Estultícia, todavia, ninguém (na época, 1511) acredita nesta profecia.
      Cassandra figura ainda o pensamento de Erasmo pelo exposto no Elogio da Loucura (1511), pois, como sublinham no Auto a generalidade dos seus interlocutores, ela está louca, fantasiando a Bíblia, mas ela está bem sabedora, tal como a oradora (Moria) de Erasmo, senhora de si exprime a sua loucura. E, como Erasmo afirma, o que escreveu neste livro é o mesmo que escreveu no Enquridion, mas agora zombando da situação, assim também Cassandra está louca ao ponto de mangar com aquela proposta de aliança com Salomão: a aliança entre o reformismo — ainda a ideologia de Erasmo — e a Igreja Romana da nova Basílica, o Templo de Apolo.
      Cassandra figura também uma poderosa crítica à ideologia de Erasmo — também exposta em Elogio da Loucura, — para quem a mulher é o pecado, e a fonte de muitos males (todos os do casamento), pois no Auto, Gil Vicente inverte a situação que foi exposta por Erasmo, no que respeita às relação entre o homem e a mulher na sua união matrimonial, dignificando a mulher em contraposição ao que ficou escrito, de novo, no Elogio da Loucura onde, para acreditar na mulher, para admitir o casamento e ter uma vida conjugal, um homem só pode ser néscio ou estulto… Talvez por esta razão — por Gil Vicente figurar quase sempre nas suas obras uma crítica a Erasmo — se não tivesse ainda relacionado também Sibila Cassandra com o pensamento daquele religioso de Roterdão.
      Cassandra foi caracterizada por Gil Vicente figurando aquele soberbo orgulho de Erasmo na pele de Moria (a Loucura), e enquanto ideal, nesta acção dramática, ela representa o próprio religioso em toda a sua grotesca autocontemplação narcísica [
uma expressão de Stanislav Zimic, em O sentido alegórico do Auto de Sibila Cassandra de Gil Vicente, Actas do Colóquio em torno da obra de Gil Vicente, Lisboa 1988. ] (em Romagem dos Agravados, FREI NARCISO figura Erasmo) e o pecado da soberba é o que mais se evidencia na afirmação de uma orgulhosa liberdade de pensar e exprimir a sua visão do mundo (um outro Jesus) da qual não quer abdicar. 
      Cassandra, em suma, é a Mulher, mas sobretudo a donzela bela daquele poema que o autor lhe dedica, antes do final, a liberdade de pensar por si mesma e de criar — tal como a Arte, — com vontade própria, na perspectiva humana de um futuro melhor, com mais dignidade e humanidade, e coisa mais bela não haverá. A esta Cassandra, Gil Vicente presta a maior homenagem, como bem denota o poema.
      Cassandra foi a figura ideal — a melhor e mais indicada — encontrada por Gil Vicente para representar a realidade histórica que pretendia figurar no seu Auto. Ela é a figura sobre a qual se centra toda a acção dramática, o núcleo de toda a trama e de todos os significados do Auto, o âmago do conteúdo e da sua ideologia.

      Salomão é o jovem que figura uma nova Igreja para Júlio II, a Igreja do novo Templo, a Basílica de São Pedro de Roma, representa o novo conceito de uma Igreja Romana, Magnifica, Majestosa e Imperial, características do rei Salomão.
      Salomão, como jovem, representa ainda o sentido de renovação da Igreja, uma Igreja mais renovada que se pretende que seja a que há-de sair do convocado Concílio de Latrão, onde os reformistas esperam encontrar uma aliança com Erasmo (o casamento em causa), mas onde o outro lado, a Igreja de Roma, espera  impor a sua vontade (Papal) como uma Igreja Majestosa e Imperial.
      Salomãodiz Erasmo – não teve pudor de dizer no capítulo trigéssimo: sou o mais estulto do varões; que antes transcrevera: quem acresce a ciência acresce a dor; muito senso muita indignação; para dizer que a sapiência que não se esconde é mais vil do que a estultícia que permanece recôndita; referindo o orador (Moria) que: pretendem com fumos de sábios ofuscar os outros como faz o meu amigo Erasmo, que sempre nomeio para lhe prestar a devida honra.
[   Erasmo, Elogio da Loucura (LXIII), Guimarães Ed., 2001, p.111-116....]

       Note-se que o tão famoso e comentado verso nas palavras de Salomão,
y más treinta y dos galinas (e mais 32 galinhas), quer dizer que além das rosas e do gado, do ouro das rosas de ouro, do Estado Pontifício, as vilas e lugares, tem ainda mais trinta e dois cardeais para reunir em Latrão, enquanto que em Pisa estão cerca de meia dúzia. Enquanto a sociedade europeia espera que de Latrão saia uma (nova) Igreja renovada, ou reformada, em 1517, com as conclusões do Concílio (no complexo Auto das Barcas), muitos viram goradas as suas expectativas.
      A questão do casamento de Cassandra com Salomão, é a reforma da Igreja tão solicitada, e de tal forma é requerida que, por adiamentos sucessivos, gera a clivagem com a convocação por Luís XII de um Concílio em Pisa. A Reforma da Igreja em aliança com as ideias de Erasmo é requerida pelas tias, as populações das serranias, essa vontade é exposta sobretudo com um sentido de esperança numa mudança e até aceitando o novo Templo. Enquanto que a Reforma da Igreja do ponto de vista dos tios, os governantes do lado do Papa, que também se deve realizar numa aliança com as ideias de Erasmo, é requerida exigindo submissão das suas ideias (de Cassandra) à vontade da Igreja Instituição, contudo, uma reforma que se admite que possa ser realizada com uma Igreja renovada, que há-de sair do Concílio de Latrão e que, necessariamente, admita a grandeza e majestade do novo Templo (Basílica), o casamento de Cassandra com o jovem Salomão.
      As Sibilas, Erutea, Peresica e Ciméria, tias de Cassandra, também se confrontam com a ideologia de Erasmo representada na sua sobrinha, figuram a cultura e ideologia da Igreja instituída e sedimentada nos povos, pelo seu peso histórico nas Nações europeias, representam os (três) povos, de França, Suiça e Alemanha, que pretendem a união da Igreja (o casamento), aceitam bem Salomão, o novo Templo (a Basílica de São Pedro), querem uma reforma da Igreja, mas com Cassandra, elas são as suas tias, com a liberdade de pensamento — por isso elas são de um universo (popular) exterior ao cristianismo — e livre interpretação da Bíblia.
      O povo por Eritreia (franceses), ou mais popular Erutea, prevê para os gregos (a Santa Liga) a queda de Tróia, enquanto por Ciméria (alemães) prevê uma descendência e Pérsica (Peresica) a morte de Alexandre.  
      (...)
      Os bíblicos tios de Salomão, representam a doutrina da Instituição, figuram a ideologia da Igreja e as forças políticas e sociais dominantes no momento histórico que se vive na Europa. Contrastando com as Sibilas (povos), são as vozes do Poder. A sua representação passa pela figuração dos principais governantes que estão do lado da Igreja, os que estão organizados na Santa Liga contra a França (Pisa). 
      Moisés (Moisem) figura o Papa Júlio II — como Gil Vicente, também Miguel Ângelo o representará no túmulo na figura de Moisés, — que era reconhecido como o libertador de Itália nas suas deslocações à frente dos exércitos do Estado Pontifício. Júlio II pretendeu libertar a Itália dos franceses e era visto pelo povo como o condutor do rebanho da Igreja, como na Bíblia Moisés à frente do povo de Israel. Aqui em Cassandra, como no Auto da Alma, Júlio II vem dizer que só à Igreja Instituição compete interpretar a Bíblia e ensinar a sua doutrina, e que a união de Salomão com Cassandra deve respeitar e dar sequência ao universo histórico desenvolvido pela Igreja. Cassandra (Erasmo e Pisa) deve deixar-se de fantasias (interpretações livres da Bíblia), submeter-se à leitura da Instituição (Papa, Moisés) e pelo casamento à vontade de Salomão (Latrão), e aos seus deveres tradicionais, deixar-se de loucuras.
      Isaías figura Fernando de Aragão, o mais forte poder militar na Europa, é ele quem decide e (Isaías) profetiza o que vai acontecer, o que ele vai impor à comunidade dos países. Com Ciméria (povo da Alemanha) profetiza uma Igreja guerreira, e desde logo uma guerra contra Lúcifer, no caso contra Luís XII. Ele quer a união entre Cassandra e Salomão, mas com o domínio do homem da casa, conforme concepção de Erasmo sobre a situação da mulher no casamento, o que (Gil Vicente) Cassandra, a louca perdida, vinha denunciando.
      Abraão figura Leonardo Loredano, o doge de Veneza, que de sua vontade nada tem a afirmar, pois vencido pela força acompanha a aliança com Júlio II…
   
      Este Auto terá sido elaborado entre 4 de Outubro (constituição da Santa Liga) e início de Novembro de 1511, enquanto Henrique VIII adiava a adesão à Liga, pois apesar das promessas e de ter recebido uma rosa de ouro, só aderiu à aliança (com limitações) em meados de Novembro. Na mesma altura, o imperador Maximiliano e os Suíços, ainda estavam a apoiar o rei de França contra o Papa. Esta situação permite datar com exactidão o Auto de Sibila Cassandra.

        A Inglaterra decidiu aderir à Santa Liga (Papa, Veneza e Espanha) em 13 de Novembro de 1511, em 17 assinou o convénio com o Estado Pontifício e só em 20 de Dezembro com Fernando de Aragão.  Maximiliano da Alemanha e os Suíços em Maio de 1512 mudam de campo, e neste ano, a República de Florença cai, e os Medici em Setembro aderem a esta Santíssima Liga contra a França.

     (...)
      Uma análise de pormenor tornará mais visível a acção dramática e permitirá reconstituir a estrutura da peça. Mas, há que ter ainda em atenção a forma geral da obra e do texto nas estrofes. Numa passagem rápida pelo texto pode-se constatar o riscar da censura, pois terão desaparecido numerosos versos.

      Pela visão geral da peça, como muitas outras de Gil Vicente construída com as técnicas da tragédia expostas por Aristóteles, parece-nos uma Comédia que encerra em si a tragédia de ninguém dar crédito à Mulher, à donzela bela, a Cassandra, à defesa das liberdades de pensamento e de ideias próprias, bem como a ameaça de guerra que se mantém. Parece-nos que o conflito, presente desde o início da peça, prossegue sempre em crescendo, complicando-se e atingindo o auge com Isaías, até que, com a introdução da peripécia, — o choro infantil e o descortinar do presépio — se resolve o conflito, todavia, como uma conformação ao momento (do acontecimento), pois Cassandra esmorece e aceita a situação: a adesão geral à convocatória do Concílio de Latrão. O desenlace que se verifica está pois dividido em duas partes: a primeira representa satisfação geral de conformismo à decisão de continuidade do poder Papal, com a aceitação do Concílio de Latrão; a segunda constituída por canto, música e dança, que tem ainda em si dois aspectos, expressa um elogio e a esperança em Cassandra, ao mesmo tempo que evidencia a situação de guerra que se aproxima, porque o conflito principal se mantém, os chefes de Estado (França e Espanha) pretendem dominar a Igreja, passando de dominados pelo Papa, a dominadores da Igreja, e assim dos restantes Estados Europeus. 
      Aquilo que se apresenta na conclusão da peça, nos últimos poemas cantados, já ficou em grande parte esclarecido: o primeiro canto, ro ro ro, a peripécia com a realidade — corresponde à primeira situação descrita, — na Igreja (a Instituição arrasta-se) tudo continua na mesma, tal como mandava a tradição, louva-se assim a união da Igreja (Latrão) e a unidade dos cristãos. Contudo, na segunda parte do desenlace, Gil Vicente reintroduz na acção dramática a permanência da situação que decorreu durante todo o Auto, com a cantiga feita e ensoada pelo autor.



        Muy graciosa es la doncella

        cómo es bella y hermosa.

        Digas tú el marinero
        que en las naves vivías
        si la nave o la vela o la estrella
        es tan bella.


        Digas tú el caballero
        que las armas vestias
        si el caballo o las armas o la guerra
        es tan bella.


        Digas tú el pastorcico
        que el ganadico guardas
        si el ganado o los valles o la sierra
        es tan bella.

      A donzela é a Cassandra do Auto (a Mulher), a liberdade de pensamento, a liberdade de interpretar com ideias próprias. Provém do Enquiridion e constitui, neste auto, uma leitura crítica do Elogio da Loucura. Para Gil Vicente nada há de mais belo do que a liberdade de pensar, interpretar por si próprio, de produzir ideias e até de fantasiar como a sua Cassandra, a liberdade de Criar. A donzela bela será a Arte (a Moça) no Velho da Horta, com quem Júlio II (o Velho), apesar dos esforços da Alcoviteira, não alcançará a união eterna.
      (...)

      O canto de Cassandra e a cantiga de folia de entrada dos tios com Salomão são dirigidas à liberdade de pensamento e sua expressão, à livre interpretação e criação — Cassandra não admite imposições — pelo que é de destacar a situação que Gil Vicente detecta (a Reforma) em toda a Europa. A luta ideológica era então figurada pelo confronto: a Graça — interpretação da Bíblia, Erasmo — andava fora da Igreja; e pelo lado da Igreja: fora da Igreja não há salvação (Auto da Alma).
        Sañosa está la niña
        ay Dios quién le hablaría?

        En la sierra anda la niña
        su ganado a repastar
        hermosa como las flores
        sañosa como la mar.

        Sañosa como la mar
        está la niña
        ay Dios quién le hablaría?

      (...)
      A nossa primeira leitura de Sibila Cassandra, que apresentámos como resumo do mythos do Auto, não esgota (porque resumo) o tema desenvolvido por Gil Vicente. Entre mais uma ou outra questão devemos deixar expresso que, no que se refere à figura de Cassandra, haverá ainda que relacionar a acção da profetiza na guerra de Tróia com a acção da sua figura no drama de Gil Vicente.
      Lembramos o Cavalo de Tróia: Cassandra opõe-se a que o Cavalo fique na cidade e, em frente ao palácio de Príamo adverte que há homens armados no interior do Cavalo (Apolodoro, Epítome), o mesmo é confirmado pelo adivinho (o sacerdote de Apolo) Laocoonte que alerta para que o Cavalo seja destruído ou queimado. Ora, Laocoonte havia casado e tinha dois filhos contra a vontade de Apolo e, obedecendo ao oráculo, vai junto ao mar (praia) para prestar sacrifícios a Apolo, todavia o seu deus, resolve a situação de guerra (que os troianos festejavam como terminada) em favor dos gregos, enviando de Ténedos duas serpentes marinhas que atravessam o mar para devorar os filhos a Laocoonte, que acorre em seu auxílio e morre com eles. O martírio de Laocoonte é tomado pelos troianos como sinal desfavorável à destruição do Cavalo e, assim, festejam o seu acolhimento e dedicam-no a Atena. São surpreendidos pelos guerreiros gregos que saem do interior do Cavalo e abrem as portas da cidade às suas tropas. Com a vitória dos gregos Cassandra que se refugiara junto de uma estátua de Atena para se proteger, enquanto a deusa distraída olha o céu, é violada por Ajax filho de Oileu, um dos guerreiros que se tinha ocultado no interior do Cavalo...


      A questão que se põe — a ser estudada com os textos de Erasmo e com as motivações e ideologias que levaram ao Conciliábulo e se colocaram em Pisa (Milão), em confronto com as posições da Igreja (de Latrão), — é se Gil Vicente ao figurar a realidade da época, com os perigos do casamento expostos por Cassandra (que são em seu desfavor), não terá visto em Erasmo, padre da Igreja e seu teólogo (na acção dramática um grego, apesar de na sua ideologia — em Cassandra — ser um troiano), algo semelhante ao Cavalo de Tróia que, com  a sua aliança com a Igreja (casamento com Salomão), iria destruir não a Igreja (Grécia), mas Tróia, pondo fim às novas ideias de liberdade de pensamento e sua expressão, fim à liberdade individual de interpretar a Bíblia tão bem figurada em Cassandra que a fantasia.
     Pensamos que Gil Vicente aborda este ponto com todo o primor, até porque Erasmo — não aliou a sua ideologia à da Igreja — nunca se submeteu à Igreja, sempre fez uso da sua liberdade de pensar e de exprimir as suas próprias ideias. Erasmo sempre foi visto pelos seus coetâneos com um pé dentro e outro fora da Igreja. Cassandra não se submete e não chega a ser violada, esta situação é sublinhada por Gil Vicente com a canção da donzela bela:

     Muy graciosa es la doncella
      cómo es bella y hermosa.

     ...Afirma a importância que Cassandra não seja violada, porque não há nada tão belo no mar ou no céu (marinheiro), nos vales ou nas serras (pastor), e por ela, — Cassandra, a liberdade de pensamento e sua expressãoa luta é bela e devemos lutar (digas tu, o cavaleiro, / que de armas te aprontavas): si el caballo o las armas o la guerra es tan bella.

      De salientar a ligação figurativa directa entre a mitologia troiana no Auto de Sibila Cassandra e as principais esculturas do jardim das estátuas, o cenário e parte da motivação do Auto do Velho da Horta, as estátuas recém-descobertas de Apolo e do martírio de Laocoonte, que constantemente serviam como modelos (para desenho) aos artistas de então, o que traduz, sem dúvida da melhor forma, a ideologia profana e a cousa nova na época.
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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