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Teatro 1502-1536
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Sobre o Auto da Ciganas
O texto desta página, de Noémio Ramos, encontra-se no livro.
Gil Vicente, O Clérigo da Beira - o povo espoliado - em pelota.
Pub. Março de 2012 - isbn - 978-972-990009-9
Farsa das Ciganas
        Quando tratámos da Tragédia de Liberata referimo-nos a uma possível interrupção do trabalho de Gil Vicente, adiando a sua representação, e à urgência da sua substituição, assim encontrando uma justificação para a pequena dimensão de Ciganas e para os limites do seu mythos, reduzido a um número muito restrito de assuntos ou aspectos da realidade da época, que incluem: a expulsão dos ciganos (na Europa); a decisão sobre a libertação do rei de França; alguns pares de acordos de divisão e distribuição dos pequenos Estados europeus; e as alianças alcançadas pelos vaticinados ou preparados casamentos.
        Por Alvará de 13 de Março de 1526, el-rei João III, proíbe os ciganos de entrarem em Portugal e ordena a expulsão de todos os que viviam no país. Esta decisão surge na sequência da mesma vontade expressa em reunião das Cortes realizada em Torres Novas em Outubro do ano anterior, e constituiu uma repetição do que também vinha sendo decidido noutros Estados europeus, como por exemplo, a França em 1504 e em 1511, a Suécia em 1521 e a Holanda também em 1526.
        Entretanto a situação política na Europa tinha-se alterado drasticamente com a libertação de Francisco I em Março de 1526, após a assinatura do Tratado de Madrid de 14 de Janeiro. A notícia chega ao conhecimento de Gil Vicente, com todas as informações sobre o conteúdo do acordo e a submissão do rei de França, no momento em que o dramaturgo está ainda escrevendo a Tragédia de Liberata, reflectindo-se isso no Prólogo do Autor: e a verdadeira rainha de França / a quem Deus, Deus nosso, dê tanta bonança / como dá Maio às flores da serra; pois estes versos constituem uma referência pelo casamento que ficou decidido em Janeiro, pelo tratado de Madrid, isto é, o acordo de casamento de Francisco I com Leonor de Habsburgo, viúva de Manuel I de Portugal.
        Além desse casamento, pelo mesmo acordo de Madrid foram estabelecidos alguns outros enlaces, conhecemos mais três (não sabemos se houve mais): o da infanta Maria (criança ainda), filha de Leonor de Habsburgo e de Manuel I de Portugal, com Francisco, o filho (criança) de Francisco I de França; o da irmã de Francisco I, Margarita de Angoulême com Henrique II de Navarra; o de Germana de Foix com Fernando de Aragão, duque de Calábria…
        Presentes em Espanha e próximas da Corte imperial, em Toledo, estarão algumas destas mulheres, Margarida de Angoulême, Germana de Foix, Leonor de Habsburgo… Outras duas mulheres, as mais poderosas da cena política europeia, podem não estar fisicamente presentes, mas a sua presença faz-se sentir fortemente: Margarida de Habsburgo, a tia que criou Carlos V, governadora dos países baixos com uma forte influência sobre o imperador; e Luísa de Sabóia, mãe do rei de França, que com o seu filho preso em Madrid governa a França, faz uma aliança com Henrique VIII e pede a ajuda aos turcos, a Solimão o Magnífico, na luta da França pela libertação do seu rei, e pelo seu poder na Europa.
        Entretanto o Papa Clemente VII e Andrea Gritti, doge de Veneza, fazem pressão sobre Carlos V para que este entregue Milão a Francesco II Sforza. Mas o Papa pretende manter as suas decisões sobre o Estado Pontifício e os banqueiros que devem gerir as suas finanças e as suas feiras.
        Os casamentos que referimos, as compensações em dinheiro pelas despesas da guerra e de redistribuição, ou compra, dos pequenos Estados pelos maiores, num acordo que, conforme a vontade do imperador - tratado de Madrid - estabelece que: Francisco I pela França ficava obrigada a renunciar à Borgonha, Flandres, Artois, Tournai, Milão, Génova e Nápoles, e deveria devolver o título e os domínios confiscados a Carlos III de Bourbon; Milão seria entregue aos Sforza. Tudo isto - e aquelas decisões sobre os ciganos em Portugal - constitui motivo para Gil Vicente ampliar a sua crítica e, talvez até, sentir uma certa revolta - com o parvo atado ao pé - contra o poder dominante na Europa.
Como afirmámos, o autor dramático tem uma peça quase concluída, a Tragédia de Liberata, que se seguiu ao Templo de Apolo, e a sua perspectiva seria de representar esta peça sobre a Divisa da Cidade de Coimbra em Santa Clara ainda no ano de 1526. Mas, venha a estar ou não, em 1526 nas margens do Mondego, do outro lado da cidade de Coimbra, adiando para outro momento (1527) a representação de Liberata, a Corte é obrigada a afastar-se ainda mais dessa cidade devido à peste, e a Gil Vicente vai ser pedida uma nova invenção.
Nesta sequência surge a peça Ciganas que, pelo seu mythos, figura a reunião de 14 de Janeiro de 1526 em Madrid, da qual saiu o Tratado de alianças, com os necessários casamentos políticos.
        A cantiga das ciganas é claramente uma descrição da situação política: aqui nos versos da cantiga, o asno tanto serve à figuração do Estado Pontifício (burro), cujo chefe é o Papa, ainda aliado de Francisco I (o Liberto), como serve para lembrar a situação deste, a quem cozinham o casamento.

(cantiga)
           
En la cozina eztava el aznu     (50)
            bailando
            y dixéronme: don azno
            qué voz traen cazamiento
            y oz davan en axuar
           una manta y un paramiento     (55)
            hilando.

        Depois de um prólogo como primeiro episódio, até à entrada dos homens, segue-se o segundo episódio que contém, a par da cantiga, a parte essencial do mythos da peça: o Tratado de Madrid de 14 de Janeiro de 1526.

        Em Ciganas torna-se relativamente simples identificar nas personagens dos ciganos as figurações dos homens políticos intervenientes directa ou indirectamente nas decisões de Madrid. Como deve ter sido hábito dos ciganos são os homens que vendem ou trocam algo, aqui cavalos, potros e burros… São quatro personagens masculinas: Liberto, entra em cena mas não tem voz no processo, só pode tratar-se de Francisco I, acabado de ser libertado, sob condições adversas, não tem voz na matéria; Cláudio figura sem dúvida o imperador Carlos V, pois além de um rocín (Borgonha) tem ainda dois bons cavalos (Milão e Génova); Carmélio figura o irmão do imperador, Fernando de Habsburgo, tem dois burricos pretos (Flandres e Artois); por último Aurício figura o Papa Clamente VII que tem um potro (Estado Pontifício) e uma burra velha (Igreja Roma) para comerciar.

        Identificar as figuras nas personagens femininas das ciganas torna-se mais difícil, contudo pela importância de cada uma delas na acção e pela pergunta de Cláudio (Carlos V), Pues qué queréis Martina que hagamoz? esta Martina será a figuração de sua tia Margarida de Habsburgo, com quem o imperador se aconselha para saber o que há de fazer e, na peça, ela é a cigana mais activa.
Não vamos fazer aqui a análise de Ciganas, mas podemos dizer que os oitenta versos iniciais são quase toda esta pequena peça que, como muitas outras apresenta cinco episódios, quatro dos quais até ao verso oitenta, considerando a cantiga a preencher o terceiro episódio, uma vez que ela não é apenas um separador, pois integra-se na acção da peça descrevendo, numa forma cantada, o mais importante do seu mythos. O último episódio, antes do Êxodo, é constituído pela leitura das mãos das donzelas figurantes, são pouco mais de cento e trinta versos, em que as quatro ciganas vaticinam sobre o futuro e organizam os casamentos, figurando o que terá sido feito em Madrid. Na Corte portuguesa os vaticínios sobre o futuro, do ponto de vista do autor da peça, podem ser leituras do passado recente de cada uma das damas atacadas pelas ciganas.
        A preparação para o percurso a fazer pelas damas é feito no quarto episódio, com as sugestões psicológicas lançadas ao público, depois de Martina ter esclarecido: que Deus vos defenda do amor de engano / que mostra uma mostra e vende outro pano / e põe em perigo as almas e vidas (64); numa clara referência ao que foi acordado em Madrid. Depois prometem ensinar feitiços para serviço das damas, para que saibam fazer muitas coisas: para que saibam ler os pensamentos de quem olham; para que saibam mudar a vontade de qualquer homem; e por fim o feitiço para que saibam qual o marido que hão de ter e o dia e hora em que hão de casar. Isto é, parece-nos que as ciganas hão-de dizer o que as damas esperam que lhes digam, algo que elas já sabem.
        A última a quem Martina se dirige deve ser alguém à parte e importante:

Martina:
            Huerta de la hermosura     (215)
            Cirne de la mar salada
            Dioz te tenga bien guardada
            y muy cegura.

Segue-se o êxodo com espectáculo:
Tornaram-se a ordenar em sua dança
e com ela se foram.

- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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