Sobre o Auto dos Físicos
Caso porventura único no teatro de Gil Vicente, os físicos, personagens da peça de Gil Vicente, correspondem, na realidade, a destacadas personalidades com as quais o autor convive na Corte portuguesa e, tanto estes como aqueles que são referidos pelas personagens, são de facto médicos de el-rei João III de Portugal, ou foram-no de anteriores reis e rainhas.
Esta peça poderá constituir um caso muito especial em toda a obra de Gil Vicente – talvez como o original de Regateiras de Lisboa, – pois, na nossa opinião, nunca foi representada ao rei.
No Auto dos Físicos o autor retoma o contexto de Regateiras de Lisboa, agora centrando a acção dramática no referido Clérigo, enamorado e atrevido (em Regateiras) por Natália do Vale e, agora em Físicos, sofrendo de amores por Branca de Nisa. E, note-se que, enquanto que antes (Antunes), Brazia (Espanha) zelava por Natália do Vale, agora (Dias), Brásia (Portugal) zela pelo Clérigo.
Em 1523, el-rei João III, depois de assistir à representação da Tragédia Dom Duardos em dia de Maio (primeiro de Maio), em Almeirim ou talvez (por mais certo) em Muge, de alguma maneira aludindo à partida para Espanha de Leonor de Habsburgo – que terá assistido e vivido aquela encenação da triste partida de Flérida – e, pouco tempo mais tarde, em Tomar, onde assistirá à representação de Inês Pereira, volta novamente a Almeirim, seguindo daí para Évora, onde nesse mesmo ano celebra a festa de Natal assistindo ao Auto em Pastoril Português e, no Natal de 1524 ao Auto da Feira onde ainda se encontrava. Entre o Natal de 1523 e o de 1524 o rei não esteve em Lisboa, por certo onde o Auto dos Físicos foi representado, como também teria sido representado antes o original do Auto das Regateiras de Lisboa.
Pela análise da peça concluímos que – como terá sido a peça original de Gil Vicente que deu origem às Regateiras de Lisboa – o Auto dos Físicos constitui um divertimento para uma pequena parte da Corte e, sobretudo, para alguns dos médicos (físicos) que estão em Lisboa em 1524, pois, para além da peste teriam muitos outros afazeres. Mas é evidente que haveria também médicos junto de el-rei. Se o objectivo da ironia, na crítica pessoalmente dirigida, tivesse sido a actividade dos físicos, não constariam da peça o nome de cada um deles, mas os nomes de personagens na forma de caricaturas daqueles que figurariam. Além disso nem as referências a outros físicos (médicos) – nos termos em que são feitas por personagens que personificam entes reais – se haveriam de apresentar, pois são citados alguns outros mestres físicos: Gil, Rodrigo, Nicolau e Luís Mendes. O objecto da sátira não está nos médicos, o objecto da sátira está na figura do Clérigo, para os médicos até há da parte do autor da peça uma certa simpatia. Costa Ramalho, muito bem o observou: quer mestre Fernando, o do estribilho «ouvi-lo?», quer mestre Henrique, o do «haveis mirado?», são apresentados com bem humorada simpatia, como personagens do «Auto chamado dos físicos, no qual se tratam uns graciosos amores de um clérigo», Como no próprio impresso existente da peça consta: no qual se tratam uns graciosos amores de um clérigo. Assim, a questão fundamental, o âmago da peça, são os amores do clérigo e não a actividade, o agir ou comportamento dos físicos.