E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
o projecto
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Que são figuras
   
    ...ou que é uma figura?

     Não fora a confusão lançada por alguns sábios nos meios eruditos — ao considerarem as figuras no teatro como sendo os actores — seria desnecessário abordar aqui uma questão tão trivial ensaiando uma explicação (didáctica) sobre o que é uma figura, em geral e, o que é o mesmo, uma figura no teatro.


      Em geral, uma figura na sua forma mais elementar é um simples sinal de algo, um indício (uma marca deixada por uma pata, uma mão), a imitação (sonora ou visual) de alguma coisa. E uma imitação não é a própria coisa em si, é uma outra coisa que se constitui representando a primeira. Por exemplo, um retrato (fotografia) é uma destas imitações, e, só aparentemente é feita pela máquina… As imagens de uma câmara de vídeo (vigilância) estática, são registos de uma acção, que registam ínfimas partes de um ou mais acontecimentos de um ponto de vista muito limitado, e em geral são insuficientes para representarem o todo de uma acção — e insuficientes para caracterizar convenientemente todas as figuras obtidas pela câmara — e, por isso, usam-se várias câmaras de vídeo, e ainda assim são quase sempre insuficientes para caracterizar as figuras, por vezes são mesmo insuficientes até para identificar as pessoas (os actores) naquelas figuras obtidas no vídeo.

      A relação entre a coisa em si e uma sua figura implica sempre a interveção humana (socializada) e alguma actividade do invidíduo, mesmo para realizar a leitura de um simples sinal, de um indício e muito mais na leitura de uma imitação mecanizada (fotografia, vídeo, etc.), muito mais ainda se a imitação é o resultado de um processo de trabalho individual sobre a coisa em si.
      A questão complica-se exponencialmente com a evolução da sociedade e a consequente integração de extensas simbologias, linguagens, geometrias, lógicas, etc., etc..  Contudo, figuras como as descritas, das mais simples que podemos imaginar (sinais, indícios, etc.) estão presentes a cada momento ao indivíduo, e como estas as mais complexas bem como todas as intermédias, socializadas, históricas, individuais e colectivas.
     Assim como um triângulo ou uma circunferência, as figuras são sempre ideais, as suas representações concretas são um resultado imperfeito das figuras ideais, foram assimiladas pelo Homem (sociedade) a partir da sua actividade social e acomodadas. Por exemplo, um indício, como uma pegada de um gato, só é reconhecivel mediante a intervenção do indivíduo com a  figura, na sua mente, da marca deixada pela pata do gato, de outro modo, nem sequer se põe a questão, pois não existirá para o indivíduo, nem gato, nem pegada, nem figura, de outro modo o indivíduo não se pode aperceber de nada. O mesmo se passa com um simples sinal. 
     
    Exposta a versão de figura mais elementar, base fundamental do conceito, vejamos também na matemática, na sua forma mais elementar, o que constitui uma figura e observemos como é equivalente ao exposto antes:
      Para um matemático uma figura constitui uma representação Fig de uma coisa complexa Cc de modo a que se tome como mais simples, como modelo ou “sombra” da coisa mais complexa. Assim para resolver a coisa complexa Cc, aplicam-se os procedimentos Pr em Fig e após a sua compreensão em Fig remonta-se a Cc. Se os procedimentos têm sucesso em Cc então a figura Fig está operacional (constrói-se a teoria), inversamente, se os procedimentos Pr falham em Cc, então haverá que reformular a figura Fig, voltar ao início, delineando outro modelo, etc. Sublinhe-se que a figura Fig é necessariamente idealizada ainda que, como nas Artes, se possa dar forma concreta ao modelo ideal.     

  
Vejamos agora o que, nas Artes, pelo menos desde os gregos (Platão, Aristóteles), corresponde a uma figura:

      No Íon de Platão, Íon, como actor, ao apresentar as rapsódias — trechos seleccionados das obras de Homero — incorpora as figuras (assume-se nas figuras ideais) de Aquiles ou Ulisses, etc., representando na acção de cada poema épico as suas intervenções (incluindo todos os comportamentos), assumindo em cada caso o carácter criado pelo poeta para essas figuras como personagens da acção da Ilíada ou da Odisseia.
      Também Aristóteles se refere a Édipo como uma figura criada com um carácter apropriado à acção da personagem no mythos (trama) das tragédias escritas por Sófocles.
      Ainda que Aquiles, Ulisses, Édipo, etc., possam ter correspondido a pessoas que viveram efectivamente, as figuras das obras dos poetas e dramaturgos não lhes correspondem senão como uma idealização, com toda a certeza muito longe da realidade. E muito menos um actor (ou protagonista) pode corresponder efectivamente a tais figuras, senão representando-as (e mais vezes mal que bem), não às pessoas que possam ter existido, mas antes incorporando as figuras ideais criadas pelos autores das obras.
      Aristófanes criou também figuras ideais, que no caso da comédia designamos por caricaturas, dadas as deformações de carácter das figuras criadas, no entanto, não deixam de ser figuras idealizadas e da mesma categoria que aquelas que idealizam a perfeição ou os deuses para a tragédia.


   
Nas Artes plásticas, a questão é de tal modo evidente que salta aos olhos, quantas figuras da Virgem ou de Cristo não foram já idealizadas?
      Perante as estátuas do rei David, criadas por Donatelo, Verrocchio e Miguel Ângelo, que relação podemos ver entre elas? Cada um dos artistas criou (idealizou) uma figura para representar o rei David.
      Em nenhum dos casos estamos perante o rei David, ou perante Cristo ou a Virgem. E em nenhum dos casos estamos perante os indivíduos que serviram de “modelo” aos artistas, ainda que os artistas tivessem retratado (fotografado) tais “modelos” (os actores), pelo que apresentámos antes naquele entendimento mais primário do que é uma figura. Porque este “modelo” tem um significado dispare do significado de modelo, como figura, da matemática ou da física (das ciências em geral). Ao confundir estes “modelos” os sábios lançam a confusão entre os eruditos… Pois, aqueles “modelos” para os artistas, são manequins nas artes plásticas, e são os actores no teatro. Estes “modelos” não são figuras. Nas Artes as figuras são entidades ideais que estão na cabeça dos criadores na forma de imagens às quais é necessário dar forma (formulando o pensamento, as imagens, simbolizando, e especificamente, figurando o objecto ausente, com o barro do manequim presente) e, para isso os artistas servem-se dos manequins (“modelos”) que colocam no lugar e nas posições idealizadas, e são até muito exigentes para com os manequins, tanto o artista plástico como o encenador de uma peça de teatro — porque o criador da peça, esse, nem necessita dos manequins ao compor o texto de uma peça — a diferença entre as Artes plásticas e o teatro é que o manequim no teatro, em geral, tem uma acção a desenvolver incorporando a figura ideal criada pelo autor, é também um artista de uma outra Arte. A Arte do Actor está exactamente na capacidade de incorporação das figuras, no saber ler o carácter (o seu ser, ideias e comportamento) das figuras ideais de cada obra e incorporar na personagem desempenhada esse carácter, conforme a leitura da obra realizada pelo encenador e, este, conforme a acção dramática lida no mythos criado pelo autor da peça.

      Os processos de criação e o desenvolvimento das figuras realizam-se pela função simbólica do pensamento humano — aspectos figurativos do penamento (segundo Piaget), pensamento figurativo (segundo Francastel), função e processos criativos do pensamento (mais modernamente), ascenção na linha dividida na vertical (segundo Platão), etc. — e constitui uma tarefa complexa que progride em confronto dialéctico com a realidade, com os resultados de cada momento da criação, com a perspectiva do projecto inicial (imagens) e com os objectivos a atingir.

   


      A confusão, ou o equívoco, pode ser proveniente do seguinte: como nas Artes plásticas chamamos “modelo”, ao indivíduo (macho ou fêmea) que serve de modelo (actuando), exactamente “serve de modelo como actor”, como muleta, manequim, para o artista criar uma figura idealizada já não do “actor”, daquele indivíduo que serve de “modelo”, mas de uma personagem, David, Cristo ou a Virgem, para a sua obra, uma figura ideal para aquela cena da acção representada numa tela ou por uma escultura. Os sábios, quando longe das questões das Artes, consideram o artista um mecânico — na leitura tradicional das universidades portuguesas (ainda em 2008) — e julgam que o artista imita (retrata) o “modelo”, isto é, que o artista figura aquele “actor” (o manequim). E assim, transferindo, de modo mecânico, para o teatro, os sábios são levados a pensar que o dramaturgo se serviria de actores para criar as figuras para as suas obras. Parece ser exactamente neste sentido que José Alberto Ferreira da Universidade de Évora, tem interpretado o passo a seguir sublinhado do Auto de Vicenteanes Joeira, tal como expõe em “Do fazer da figura em Gil Vicente”, Volume I de “Gil Vicente 500 anos depois”, 2002. Questão que o professor catedrático José Augusto Cardoso Bernardes, da Universidade de Coimbra, sublinha, transcrevendo a questão em Novembro de 2008, na sua publicação de “Gil Vicente”, da colecção Cânone das Edições70.

      Assim José Alberto Ferreira depois de bastas citações não relacionadas, e de grandes especulações acerca do “per figuras”, figuração e pré-figuração, apresenta o trecho que sublinhamos (versos 525 a 531), afirmando o seguinte a esse propósito: Pero “argumenta sobre as qualidades das figuras, inequivocamente actores, de que carece para fazer bem os autos…
      Lamentavelmente, toda a sua intervenção (a sua tese) no texto em causa se baseia neste dizer que as figuras são inequivocamente actores. Partindo desta “certeza”, que tomou como base de sustentação, procurou justificar a sua posição com outros exemplos em didascálias de diversas obras de teatro, como se o erro diversas vezes repetido pudesse resultar na tal “certezainequivocamente actores…    

      Pensamos que a questão é trivial, como afirmámos no início, e deixamos a conclusão da leitura destes versos ao leitor, lembrando que é um diálogo que trata da criação das peças de teatro, que é apresentado pelo autor delas, Pero Camões, que afirma logo que é trabalho infinito (…) o trabalho do espírito.



Pero      Senhor, podeis assentar
               que é trabalho infinito,
               de quanto podeis cuidar,
               o trabalho do spirito!
  Rui       Não tendes que duvidar...

               Que, é dos mores trabalhos
               de quantos trabalhos vi!
  Pero      Ora pois, senhor senti,
               e vereis, que esses trabalhos,
               não podem nascer de mi!

  Rui       Não me façais tão sarrado,
               porque eu sei, que quereis bem,
               e que sois mui namorado.
  Pero      Coitado de um coitado
               que todos trabalhos tem...

               (…)

  Rui        Eu sei, se não me engano,
               que fazeis dous consoantes,
               fazeis mil autos, cada ano!
               E todos muito galantes,
               sem fazer a ninguém dano...

               Em vós, farão aparato
               e sereis favorecido!
  Pero      Senhor, eu tenho sabido,
               que quem entra aqui em auto
               o tem por mui abatido...

               Porque, se estais falando bem,
               um dito muito atilado,
               olhai bem para vosso lado,
               ouvireis dizer, que vem
               de serdes desavergonhado!

               Vêm quatro moços avio,
               os quais nunca viram gente,
               em que o auto fosse quente
               dizem que foi muito frio,
               que não vão dele contente.

               Vós estais-vos desfazendo,
               e apaixonando em forma
               por está-los comprazendo,
               eis senhores, vão dizendo
               que foi muito boa broma.

  Rui        Polo tanto, senhor meu,
               tendes vós muito empacho
               dessas obras de sandeu!?
  Pero      Pois, que culpa tenho eu,       (525)
               se eu, figuras não acho!?

  Rui        Que as não busqueis vós na arca!
               Buscai-as com diligência...,
               e achareis sem aderência
               mancebos de muita marca...,  (530)
               figuras, por excelência.

               (…)

     O Autor do Auto de Vicenteanes Joeira não é caso único ou especial, como neste auto, em todos os outros casos, quando há referências a figuras, "per figura", pre-figuração, etc., os seus autores referem-se sempre a figuras com o sentido geral, que afinal é o mesmo que o específico em qualquer área da actividade humana.
     
      Difícil seria encontrar actores numa arca! Mas na arca guardavam-se os livros, e neles se acharia com facilidade figuras por excelência, mancebos de muita marca… Figuras ideais, Aquiles, Eneias, etc., tal como fizeram e faziam muitos autores.
      Ainda no século XVI os licenciados e mestres retóricos, que se deslocavam numa mula entre os povoados, carregavam a sua arca de livros na mula. Aliás como Erasmo de Roterdão também fazia...

      Como se pode ler em Romagem dos Agravados de Gil Vicente:

    Frei Narciso:     Dizei-me Cerro Ventoso
                            nam hei de ter uma mula?
Cerro Ventoso:    Se for bem estudioso
                            por que quer um religioso   
(620)
                            andar sempre xula xula?


      Assim em Gil Vicente as figuras são entidades ideais compostas por diversos entes, que podem ser, até incluídos na mesma figura, conceitos, personalidades da época, entidades, instituições, ex-machines, etc..
      Em geral, cada figura está mais caracterizada pela acção dramática do que pela tipologia que o autor apresenta, sendo o “tipo” social uma forma de adicionar à figura mais uma faceta do seu carácter. Assim apresentamos para cada Auto de Gil Vicente as suas respectivas figuras e a sua descodificação, e em separado, as personalidades da época e as suas figurações, as entidades, instituições, conceitos, etc..  Esta tarefa está ainda a ser completada e estruturada para ser apresentada neste sítio.

                                Faro, 1 de Junho de 2010.
                                Noémio Ramos

- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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