Sobre a moralidade, trama, mythos e enredo
Referimos algumas vezes que consideramos a trama como a forma abstracta do mythos (este, a forma da realidade de facto criada na peça com o seu sentido histórico) e do enredo (a forma aparente). Que entre mythos e enredo além da sua forma abstracta (esquema) comum, a trama, há ainda uma relação de transposição de um ao outro (transposição de sentido), que pode surgir por diversas formas, uma delas é a fábula, não temos a certeza se já o referimos ou não, se não, aqui fica um exemplo concreto, bem elucidativo, do qual o leitor realizará a devida abstracção. Se, por exemplo, na peça O Clérigo da Beira é fácil constatar a construção da fábula – do povo espoliado – pela passagem do mythos ao enredo (ou desconstrução, do enredo ao mythos, no público espectador), em Exortação da Guerra, a transposição do mythos para o enredo (ou inversamente), não reconstitui esta peça como uma fábula, poderia até ser uma intriga (haverá casos), mas neste caso, com certeza melhor, a transposição realiza-se na forma de uma moralidade, porque de facto há um desígnio ético ao evidenciar o estado ébrio e infernal pelas vitórias, os anseios de grandeza, conquista e expansão em nome da fé, no enredo, ao mesmo tempo que o mythos, que o suporta, apresenta uma realidade de facto crua muito sóbria e mui lúcida, mostrando a ler (ver) na peça, a sua forma mais complexa, fornecendo o ponto de vista crítico dos ensinamentos da História (Aníbal, Cepião) e do que neste mundo lemos: Homero na Ilíada, Aquiles e Heitor, qual deles o herói? Diz Aquiles: Se viesse aqui Aníbal / e Heitor e Cepião / vereis o que vos dirão / das cousas de Portugal / com verdade e com razão. E em resposta, obtém-se: (Aníbal) Que cousa tão escusada / é agora aqui Aníbal / [… censurado …] / que vossa corte é afamada / por todo mundo em geral. / (Heitor) Nem Heitor não faz mister. (505) / (Cepião) Nem tão pouco Cepião.
Numa das nossas publicações de 2008 afirmámos que, quando o autor dos autos afirma que escreveu comédias farsas e moralidades, por moralidades se referia a críticas políticas. Ora, esta peça Exortação da Guerra, que nos dias de hoje podemos classificar como uma Comédia de espectáculo (envolvendo uma moralidade), foi, para Gil Vicente, aquilo que ele considerou ser uma moralidade. Se na verdade o conceito de Comédia da época difere do de hoje, poderá não haver acordo quanto à classificação que lhe atribuímos, contudo, o sentido para o conceito de moralidade em Gil Vicente encontra-se muito bem expresso nesta peça. Na crítica realizada pela ironia, ou pelo sarcasmo, com o inferno a louvar a Deus, pois a peça, pela sua crítica, muito bem expressa com toda a paródia do Inferno em luta pela Fé, pretende alertar para a existência de limites, que devem ser considerados na ânsia de ampliar o Poder, sob pena de tudo deixar perder (no Inferno).
Esta moralidade tem dois aspectos, ao mais complexo – transposição do mythos ao enredo – já nos referimos, quanto ao aspecto mais simples, a moralidade aparente, sobejamente conhecida, dirige-se às almas simples e trata de promover a austeridade, contra o luxo as casas pardas, a renúncia às jóias para sustentar o esforço da Nação numa guerra pretendida pela glória no aumento da grandeza da Corte, da sua riqueza, mas sempre idealizada pela expansão da fé, etc., todavia, apresentada em favor do apoio ao guerreiro... Na verdade, diríamos que em confronto com a ética se considerarmos os apelos à guerra de invasão e conquista, para assim evidenciar melhor a ironia na acção dramática, portanto em oposição total com a moralidade mais complexa.