Comentário
Acreditamos que Gil Vicente estava ciente que a sua modéstia, assim como a sua grande humildade, apenas lhe serviam para encobrir um ilimitado orgulho pelo seu trabalho, sabemo-lo pelo seu maio - Todo-o-Mundo e Ninguém, - pelo constante dilema em que vive a sua consciência, exposta naquelas figuras para a leitura dos clérigos inquisidores Dinato e Berzabu no Auto da Lusitânia, sabemo-lo também pelo seu filósofo com o parvo atado ao pé, onde a sua consciência se figura naquele par encadeado de Floresta de Enganos e, por laços firmes, ligado ao serviço da Corte portuguesa, e sabemo-lo ainda por esta mesma Carta preâmbulo, quando o autor respondendo à sua pergunta retórica: Livro meu, que esperas tu? (diz) Porém te rogo que quando o ignorante malicioso te repreender, que lhe digas: Se meu Mestre aqui estivera, tu calaras! Pois, ele bem sabia que esta carta resultaria numa tremenda ironia e, por isso volta a sublinhar que: estava sem propósito de imprimir minhas obras se Vossa Alteza mo não mandara, não por serem dignas de tão esclarecida lembrança, mas Vossa Alteza haveria respeito a serem muitas delas de devoção, e a serviço de Deus endereçadas, e não quis que se perdessem, como quer que cousa virtuosa por pequena que seja não lhe fica por fazer… Dizendo assim, claramente, que quem considerava as suas obras serem muitas delas de devoção, e a serviço de Deus endereçadas, era el-rei João III de Portugal e, pela manifesta ironia, nunca o autor delas.
Contudo, a obra teatral de Gil Vicente adquire ainda uma maior importância, universal - porque um caso único (?) - por toda ela consistir numa representação da História da Europa do seu tempo (1502-1536), formulada na própria sequência do desenrolar dos factos e das ideias, pelos mais destacados feitos sociais e humanos, percorrendo o desenvolver da cultura da sua época, distanciando-se o autor para observar pelo lado de fora, vendo acima e por cima dos acontecimentos, como de facto deve fazer um artista, como o realizador e criador de uma permanente reportagem que interpreta em cada momento a situação política, económica e social, nas suas relações com as ideologias em curso de desenvolvimento, retirando da sua análise lições universais sobre o comportamento humano, quer na sua relação com as ideologias, quer no uso do poder, quer na relação deste com os homens e a humanidade, quer ainda nas relações políticas e sociais entre os homens e as Nações ou entre elas, quer nas mais simples e humildes atitudes humanas, e condensando tudo isso nas suas obras, oferecendo-nos a tremenda complexidade das ideias em curso frente à situação política, social e humana, sempre figurada do modo mais simples. Onde em cada peça se apresenta a unidade de uma nova invenção, sempre diferente da peça antecedente e sempre enraizada na realidade da luta ideológica, política e social que lhe serve de fundamento.
Texto extraído do Prefácio de "Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota" de Noémio Ramos.