O diálogo de confronto de Sócrates com Íon é, na sua forma aparente e na letra, o mais curto dos diálogos criados por Platão. Contudo, com uma aparência (a forma aparente, sensível) muito simples é, no entanto, uma obra bastante complexa, pois tal como Platão expôs em Fedro, os seus diálogos são postos por escrito por serem dedicados à educação e ao ensino da juventude, e por isso lhe mereceram os maiores cuidados em todo o seu processo de criação e elaboração.
Como afirma a figura de Sócrates, idealizada por Platão, ainda em Fedro, tais textos devem ser criados de modo a que se apresentem simples para as almas simples, mas que sejam em tudo como a natureza humana e social na procura da Verdade, pelo trabalho do pensamento, complexos e repletos das mais variadas harmonias para as almas mais complexas...
De um modo geral as obras de Platão têm sido lidas apenas na sua forma sensível, na sua letra, no mundo da forma aparente, raramente ultrapassando este estádio do mundo sensível, na sua linha dividida na vertical. As suas obras são-nos assim apresentadas como simples para as nossas almas simples.
Numa análise mais profunda, ao nível do entendimento (da dianóia), as obras de Platão (ainda numa forma aparente) parecem ter contradições, e neste aspecto, têm sido e ainda são campo de grandes confrontos ideológicos e filosóficos... É um mundo dos meios universitários, uns como Hípias, outros Parmenides, Górgias, etc., todos eles têm de justificar de algum modo as suas leituras de Platão, normalmente perfilhando o pensamento de Sócrates (como sendo o de Platão), o modelo ideal criado pelo autor.
Todavia, Platão não é Sócrates! O pensamento de Platão é dialéctico. E para o expôr o autor encontrou um processo que não deixa quaisquer dúvidas: o seu pensamento é exposto pela Arte, pela Arte dramática, expõe-se na acção dramática.
O seu pensamento cria (como base, hipónoia) uma representação, construindo uma realidade de facto (a peça escrita, contudo, posta em cena, concretizando-se em acção viva, num discurso vivo), que figura em tudo a realidade material, constituída pelas seguintes realidades: objectiva (lógica e racional), construída (actual e socio-histórica, acomodada pelo senso-comum, pela crença, fé, etc.) sensível (pecebida pelos sentidos, actualmente vivida e apreendida), desejada (afectiva, motivada ou instintiva).
É deste universo, do pensamento figurativo de Platão, na acção dramática criada, que surge ao leitor, por clarividência (processo de tomada de consciência), o conteúdo da sua obra, os seus significados, a plenitude do seu pensamento. Tal como ao observarmos uma pintura (quando Arte de facto) com um ver inteligível nos surgem os seus significados e descobrimos por eles o conteúdo das formas e o pensamento do seu autor.
Gil Vicente aplica esta mesma técnica de trabalho nas suas obras de teatro, e assim tal como as obras de Platão, as suas peças surgem simultaneamente complexas e repletas das mais variadas harmonias às almas mais complexas e simples às almas simples.
Até agora as obras de Gil Vicente, tal como as obras de Platão, têm sido consideradas pela nossa alma mais simples, pelo tolo, pelo parvo, pelos Íons, mas também, ou de outro modo, pelos soberbamente "racionalistas", os que apenas atingem a objectividade nas folhas de papel, na letra (não se apercebendo da floresta): os Hípias, os maiores sábios dos nossos meios científicos, políticos e universitários.
Platão, dramaturgo e filósofo, criou as suas figuras como tipos humanos, a partir de pessoas reais:
Sócrates, um modelo ideal, caracterizado na Apologia e sobretudo no Fenon (onde justifica a sua morte pela sua teoria das ideias, aqui a teoria de Sócrates, não a teoria de Platão);
Íon, o artista "inspirado pelas musas", enaltecido pela sociedade e por ela superpremiado, mas afinal ignorante e completamente desfasado da realidade da Arte;
Hípias, o maior sábio, elogiado pelo Poder e auferindo riqueza a ensinar as suas certezas, considerado pela maioria e pelo Poder de toda a Grécia um especialista em todas as técnicas, e em especial nas técnicas do Belo (a Arte), todavia, na verdade incapaz de compreender a Arte e o Belo;
Menon, o jovem pretendente à vida política que quer adquirir as virtudes de um bom político, contrastando com Anito que nunca as aprendeu de seu pai e foi incapaz de as adquirir;
Cálicles (no Górgias) a figura exemplar do nosso oportunista político (um bom retrato dos políticos da actualidade);
etc..
Gil Vicente, como Platão, cria as suas figuras como tipos humanos a partir dos senhores da Europa do seu tempo (políticos, ideólogos, Instituições, etc.), caracterizando-os nas suas figuras mais ridículas (como convém à Comédia, definida por Aristóteles), mas também, como Platão, os senhores figurados são-no pelo seu próprio Ser e mais pelas suas acções.
Como em Platão, os tipos humanos de Gil Vicente, são eternos: os líderes (pastores) e os seus outros, os parvos; os “ratinhos”, “fidalgos”, “vilões”, “escudeiros”, “alcoviteiras”, “sapateiros”, etc..
Para lermos uma peça de teatro de Gil Vicente é importante conhecer Platão e o seu processo de trabalho, pois foi pelas técnicas e pelos tipos humanos criados por Platão (com um contributo de Aristófanes) que Gil Vicente iniciou todo o seu trabalho. É preciso saber ler o Íon de Platão!