Comentários
No Auto da Índia podemos ver claramente aplicada uma das técnicas de construção do mythos proveniente da comédia antiga, de Aristófanes (de Aristófanes, ler Os cavaleiros e analisar a sua técnica de construção do mythos), comprovando-se assim que os conhecimentos de Gil Vicente, além da filosofia de Platão, e pelo menos, da Poética de Aristóteles, abrangem o teatro grego, e não tanto pela tradição medieval europeia, que por intermédio de Terêncio se apoia mais na comédia nova.
Além disso, o que é para nós bem mais importante, esta peça constitui o primeiro modelo de teatro de capa e espada da renascença, com a intervenção de um galanteador e (neste caso talvez com influência mais romana, um soldado fanfarrão) espadachim fanfarrão (um Dom Juan) de capa modesta (disfarce), exibindo-se no cortejar (falso) de uma dama casada, vangloriando-se de fantasiadas lutas de espada.
(A capa poderá ter tido origem no teatro grego, ter passado para o romano com a fabulae palliatae, - fabula palliata - de Plauto e de Terêncio, um tipo de comédia de influência grega, que foi assim apelidada devido ao uso do pallium himation (vestimenta grega), espécie de manto, que corresponde a uma toga (mais ampla) romana.)
Sobressai ainda a mestria e subtileza do autor na construção da acção dramática, que excedendo aquilo que se passa no palco, o salão da casa, com a própria acção dramática da peça, induz no público a visão imaginária de tudo o que se passa lá fora (integrando na acção) na sua proximidade, no quintal (além do Castelhano, as crianças brincando), na cozinha (animais), no quarto de cama (Lemos com Constança), como também tudo o que está mais além, no Mercado da Ribeira (pão, vinho, azevias, berbigão, ostras, etc.), nas actividades sociais (vinagreiro, corregedor) no próprio país (religião, missas, romarias, etc.), na Índia (assaltos, roubos e combates), por esses mares… Poderíamos acrescentar também, um novo sentido do teatro, com a integração da filosofia e ideologias no âmago das suas peças, mas deixaremos isso para uma melhor oportunidade.
Contudo a leitura analítica de Índia, quando posta em cena (ao vivo num espectáculo, formulada ainda que por uma encenação livre), só é possível de realizar com uma encenação rigorosa que respeite a forma da obra e a estrutura do auto, que respeite o esquema dos cenários e dos adereços ou referências indicadas ou implícitas no texto do auto (incluindo as históricas, sociais e culturais), pois só cumprindo todo o esquema da trama criada pelo autor podermos alcançar o mythos e os conteúdos consequentes. Nenhuma destas exigências retira a liberdade de criar ao encenador, apenas se exige que entenda a obra e a dê a entender ao público.
Quando observamos esta peça ser encenada com uma cama no palco, o Castelhano dentro de casa, e mesmo com muitos outros pormenores que, como estes, deformam totalmente a obra, só nos podemos lamentar de tanto vandalismo cultural, ou numa pior hipótese, de tanta incompreensão da forma de uma obra de arte… Espanta-nos também ouvir gente com responsabilidade nos meios teatrais dizer que os textos de Gil Vicente “são óptimos porque servem para tudo”, ou ver organizarem a encenação de extractos (segmentos) de peças, que como rapsódias se apresentam ao público e com que se pretende “explicar” o teatro de Gil Vicente, fazendo lembrar as tolices - patetices, idiotices no grego - do célebre Íon que Platão apresenta em diálogo com Sócrates. A que ponto chega a insensibilidade, a falta de cultura e a desinformação de quem é galardoado nestas áreas das Artes.
O mundo de agora é dos hípias, mas sobretudo dos rapsodos - dos íons - e do espectáculo (e performance) que, tal como os coribantes, são apenas sensíveis àquela parte do verso lírico pela qual são possuídos pela divindade; pela força magnética, convertendo os seus adeptos em acérrimos bajuladores (panegiristas) do seu autor (Platão, Íon). Neste contexto, em muitos teatros de Portugal, têm sido apresentadas encenações de alguns dos versos retirados das obras de Gil Vicente, postos em rapsódias, cujo sentido só os rapsodos seus autores imaginam e, aficionados como Íon, descrevem ao público ou publicam em artigos ou entrevistas.
Imaginemos um quadro de Leonardo da Vinci, a Ultima Ceia por exemplo, quantas cópias já se fizeram, quantas leituras interpretadas… Toda a gente é livre de fazer a sua leitura, e reconstruir uma interpretação, ou realizar uma intervenção cultural com base naquela ou noutra obra. Contudo, o restauro da obra deve seguir as linhas e as cores, e tudo o resto do autor, com respeito pela sua obra em geral e pelas técnicas do autor. E só perante a peça bem restaurada estaremos com certeza a ver a obra do Autor. E só estas, podemos classificar como de Leonardo, como sendo suas próprias obras, nunca as suas cópias ou outras interpretações.
Com as obras de Gil Vicente devia passar-se o mesmo! Mas para isso é necessário antes de tudo compreender as suas formas, a forma de cada obra de arte, e só a cada uma dessas formas - após restauradas sem danos sofridos - denominar, na sua encenada representação em palco, como obra de Gil Vicente. Tudo o resto serão apenas reescritas, recriações de outro autor, ou então cópias toscas, mal elaboradas, com insuficiente compreensão do original, que apenas desvirtuam os seus autores arrastando consigo o mestre. Divulgar e publicitar tais encenações toscas, tem contribuído muito como diria o filósofo (Platão), para manter ou afundar ainda mais os olhos da alma na espécie de lodo bárbaro em que está atolada.
(...)
Após este texto, tivemos conhecimento de uma representação do texto do Auto da Índia, numa destas enceneções mais toscas, feito simples para as almas simples, realizada na Assembleia da República Portuguesa, por um grupo de teatro (ACTA) suportado pelo Estado a tempo inteiro.
Em Dezembro tivemos conhecimento da encenação de outro texto de Gil Vicente, o Breve Sumário da História de Deus, ao qual se aplica o mesmo que aqui dissemos sobre as encenações do Auto da Índia. Contudo, neste caso mais grave ainda, por ser um trabalho levado a cabo por uma Companhia Nacional, e o espectáculo ser representado nos Teatros Nacionais, de São João no Porto, e de Dona Maria II em Lisboa, entre Dezembro 2009 e Janeiro de 2010, e sobretudo, por haver já uma referência ao conteúdo expresso deste Auto publicada há quase ano e meio em: Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II..
Em 2010, continuamos a assistir a encenações e representações para as almas mais simples, na visão do parvo, para os enredados no mesmo espírito de corpo, envolvidos naquela cadeia de anéis, tal como Íon recitando a Homero dirigindo-se aos homéridas. Também já neste ano ouvimos apregoar a representação de Barca do Inferno - primeira parte do Auto das Barcas - repetindo a visão do parvo. E mais grave ainda, continuamos a ver divulgar na Internet, as encenações pela mesma visão do parvo, em vídeo produzidos pela (CITI) Universidade Nova de Lisboa, de Alma, Índia, Pranto de Maria Parda e a primeira parte das Barcas, o Inferno.
(...)