E assim se apresenta no Auto a caracterização da Alma e do Anjo até ao fim da cena, e logo depois, com a entrada do Diabo, prossegue em novas cenas, de modo a completar a figuração da ideologia (da imagem) criada por Erasmus para significar a luta do homem consigo próprio, ou em Gil Vicente as reflexões elaboradas para a acção do Auto da consciência humana.
De seguida, acompanhando a caracterização da Alma, com a identificação da figura e da ideologia subjacente na figuração, Gil Vicente passa à figuração dos acontecimentos que envolvem a figura representada na Alma. E, apresenta-os do ponto de vista da ideologia do Enquiridion, como pecados…
É assim que nos surge a exaltação da vaidade pelas primeiras grandes iniciativas públicas do Papa… Pois, não é em vão que Júlio II cria o Jardim das Estátuas no Vaticano, não é em vão que procura Miguel Ângelo para realizar a sua estátua (e o que logo virá a seguir), não é em vão que manda construir a nova Basílica de São Pedro, não é em vão que organiza as suas Entradas, ou os grandes festejos de exaltação pública, tal como o lançamento da primeira pedra da Basílica:
Não são embalde os haveres, / não são embalde os deleites / e fortunas, / não são debalde os prazeres / e comeres, / tudo são puros afeites / das criaturas.
Numa primeira parte do Auto, até ao primeiro contacto da Alma com a Madre Igreja Santa, até ao diálogo dos dois diabos, tanto a linguagem como os conceitos utilizados na acção dramática, como no seu texto, são os expostos por Erasmus, invertendo-se o seu sentido, quando são apresentados nas falas do Diabo... Os desejos do corpo, incluem portanto todos os desejos deste mundo: O que a vontade quiser / quanto o corpo desejar / tudo se faça / zombai de quem vos quiser / repreender / querendo-vos marteirar / tão de graça.
E ao aceitar o que o corpo desejou e a vontade quis, sobressai a mulher (de parecer), que há nesse Adão, que há em todas as Almas - sublinhemos que a personagem de Alma não é uma figura feminina - pois trata-se da visão do Homem que Erasmus deixou no Enquiridion.
Como referimos, pelos chapins de Valença figura a vitória sobre César Bórgia, como figura as cometidas do Papa em 1506 em Perugia e Bolonha, daqui para ali, as suas entradas triunfais, e de lá para cá no regresso a Roma:
Uns chapins haveis mister, / de Valença, majestosos! / Ei-los aqui... / Agora estais vós mulher / de parecer... / Ponde os braços presumptuosos, / isso si! // Passeai-vos mui pomposa... / Daqui para ali, e de lá para cá / e fantasiai! / Agora estais vós formosa / como a rosa... / Tudo vos mui bem está, / descansai.
Meu caro irmão cessa de olhar por todos os lados o que fazem os outros, e de te comprazer em ti mesmo em comparação com eles. (Erasmus)
[Anjo] Que andais aqui fazendo? / [Alma] Faço o que vejo fazer / pelo mundo. (Vicente).
A cegueira dá-nos uma falsa visão na hora da decisão, faz com que sigamos o pior em vez do melhor… É pois, necessário que distingas entre o que queres e o que hás-de evitar, por isso há que corrigir a cegueira para não vacilar na hora da escolha… (Erasmus)
[Anjo] Alma santa quem vos cega / vos carrega / dessa vã desaventura. [Alma] Isto não me pesa nada! / Mas a fraca natureza / me embaraça, / já não posso dar passada / de cansada… (Vicente).
Atendendo a que esta guerra, em curso, é a da Alma consigo própria, contra o seu corpo, nos conselhos dados pelo Anjo será para si própria que a Alma se dirige. Todavia, já o Diabo, o Mundo, atenta com uma guerra de facto, real, com sangue e muita gente morta, que é preciso enfrentar em nome de todos, da sociedade e do Estado, que é figurada de modo a suscitar uma recuperação do que lhe pertence, não a si, mas ao Estado de que faz parte, a todos os que fazem parte do seu corpus social, e assim insiste na necessidade de preparação da guerra contra Veneza:
Olhai por vossa fazenda... / Tendes umas escrituras / de uns casais / de que perdeis grande renda, / é contenda / que deixaram às escuras / vossos pais. // É demanda mui ligeira, / litígios que são vencidos / em um riso, / citai as partes terça-feira, / de maneira / como não fiquem perdidos, / e havei siso.
Talvez melhor que o Anjo a figurar e transmitir a doutrina de Erasmus, esteja o Diabo, personificando o antagonismo como contraponto aos preceitos ideológicos expressos no Enquiridion. Ambos fazem parte desta Alma, e ambos trabalham para um mesmo fim, pois de um modo ou de outro, ambos pretendem o sucesso da Alma, neste Mundo (de enganos) no caminho das Almas para a salvação. Há que recorrer à Hospedaria, para aí deixar a carga: Oh como vindes cansada! / E carregada!..., a sua riqueza, como para descanso e recuperação da Graça, para ser devidamente encaminhada e tratada (curada) pela Santa Madre Igreja.
Às teses ideológicas de Erasmus vão agora sobrepor-se os já existentes pilares da Igreja, os três que são referidos no Enquiridion, mais um, silenciado, mas aí também presente nas críticas; um dos novos teólogos da escolástica, moderno para Erasmus, segundo as suas críticas, que surge na Igreja e cujo legado se impõe aos dirigentes eclesiásticos dos últimos séculos, que surge triunfante nos últimos concílios, São Tomás de Aquino. No Auto, Gil Vicente sobrepõe à velha (a romana pós mártires), e à então actual Igreja, a Igreja do futuro com a nova Basílica de São Pedro de Roma, como pretende o seu líder, renascentista, a Alma, que assume a direcção da Igreja, e por seu livre arbítrio decide, impondo a sua vontade fundamentada... Perante as teses que insistem no regresso às origens, a um cristianismo pelo sacrifício e pelo martírio: zombai de quem vos quiser / repreender / querendo-vos marteirar / tão de graça.
A liberdade de pensamento, isto é, de o indivíduo interpretar livremente as Sagradas Escrituras apresentada por Erasmus, preconizada e realizada pelo próprio autor do Enquiridion, trazer para fora da Igreja a Graça Divina, encontra oposição desde as origens da Igreja... A oposição dos três santos doutores muito citados por Erasmus no seu Manual, cuja sustentação ideológica foi tão bem dramatizada por Gil Vicente neste seu Auto — a figurada concretização da interpretação alegórica da parábola do bom samaritano — demonstrando que o próprio autor não segue os conselhos que dá, ou seja, seguir o exemplo dos santos, e logo naquela parábola mais tratada por Agostinho, aquele santo que Erasmus mais recomenda!
Sobre a figuração dos problemas políticos sociais e ideológicos pelos autores portugueses do início do século xvi, convém deixar aqui algumas palavras…
Gil Vicente trata as questões ideológicas, políticas e sociais em muitas das suas obras, e até na sua última peça, Floresta de Enganos, explora este mundo — Templo de Enganos — do Auto da Alma, pois todo o mundo anda enganado, uma expressão do Enquiridion, que voltou a aparecer em Elogio da Loucura…