Na sua entrada em cena Duardos vem preparado para o combate, um confronto de cavaleiros, de armadura leve (renascentista) de elmo com a protecção viseira baixada (encoberto), enunciando alguns dos princípios éticos da Cavalaria, pelos quais se rege, diz que vem pedir justiça, que o imperador não lha pode negar (na versão dois): que vueso estado (15) / es por la verdad morir / y la verdad conservar / con cuidado. // Y debéis de hacer justicia, / que es hija de la verdad, (20) / de tal son / que por ira, ni amicicia, / no dexe vuesa majestad / la razón. E, na copla seguinte continua: /// Que si con muestra de rey (25) / vendiéredes después señor / falso paño, / vos os quedaréis sin ley / y será emperador / el engaño. (30). // Por sí sí, y por no no, / sea la vuestra divisa / principal, / que quien lo contrario usó / su fama paradisa (1586,35) / hizo mal. Depois, na sequência da acção dramática, seguindo as orientações de Olimba, para conquistar o amor de Flérida: irá enganar, mentir, subornar, corromper, fazer falsa amizade, iludir e subornar os populares, etc., e, por fim, usar de meios mágicos (perdendo a razão) para por encantamento atingir os seus objectivos, dominar e impor a Flérida o amor por ele, suprimindo-lhe a liberdade. Porém, só atingindo os seus objectivos matando o defensor da Liberdade e da ética cavaleiresca, para obter a grinalda de Maimonda, a coroa de flores da Maia que Camilote, com todo o sacrifício e risco de vida, tinha colhido para engrandecer a sua amada Liberdade, dizendo: la doy a la más hermosa / que nació en la vida humana / hasta aqui..(1562,405). …que en tierra, a la redonda [em todo o planeta], (1562,360) / no se halló nunca su par…
A derrota de Camilote, após vencer diversos cavaleiros em defesa dos seus princípios e da Liberdade, enfrentando o imperador pela igualdade do direito ao Poder, prepara o momento mais dramático e trágico da peça, a peripécia. E, sobre aquele que matou Camilote diz Amândria que para mayo / es un príncipe estranjero ou (versão dois da mesma peça) Para mayo / no es sino estranjero. Depois Artada descreve em versos nobres a tormenta consequente, não só pela morte de Camilote, pois após o anúncio da morte do Cavaleiro selvagem, sucede o acosso a Maimonda, com um destacado momento fora de cena quando Duardos confisca a grinalda de rosas – como parte da encenação haverá uma exibição espectacular de forte tempestade – dizendo Artada mui pesarosa: Acuérdeseos, señora, qu’el sol es partido / de nuestro horizonte, y es noche cerrada, / la luna ahora es toda menguada, (1562,1855) / y so las estrellas quedó nel partido…
A esta peripécia sucede logo o reconhecimento, e é o próprio Duardos que o explicita no desenlace, expondo-o ao público ao entrar em cena vestido de príncipe com a grinalda de Maimonda e dirigindo-se a Flérida, enquanto a tristeza de ambos mais se aprofunda: Na primeira versão de Dom Duardos [1562] …//A vos señora, son debidas / flores, de más altas rosas / y peligro, / aunque estas, fueron cogidas / en las sierras más hermosas (1885) / deste siglo. // Y aquél que las cogió, / se puso en harta ventura / con serpientes… / Él, por Maimonda murió…, (1890) / y yo, por la hermosura / de las gentes. Estes versos, depois alterados na segunda versão de Dom Duardos mantêm o mesmo sentido (sem as crianças, a peça que terá sido representada em 1 de Maio de 1523): …//A vos señora, son debidas / grinaldas de más altas rosas / y peligro, / aunque éstas fueron cogidas / en las sierras más peligrosas / deste siglo. (1775) // Y aquél que las cogió, / se puso en harta ventura / con serpientes… / Él, por Maimonda murió…, / y yo, por la hermosura (1780) / de las gentes.
Note-se o plural em de las gentes (em vez de uma só pessoa, Flérida), para se compreender Liberdade em Maimonda, como anos mais tarde Gil Vicente faz desaparecer Liberata perante a morte de Monderigón – em Tragédia de Liberata (Divisa de Coimbra) – ela some-se para não mais estar presente entre las gentes. Aqui na Tragédia Dom Duardos deve ler-se em luta pelas Comunidades de Castela. Porque, a Castela (à Nação) são devidas (flores) grinaldas de mais altas rosas e perigo, colhidas nas serras mais (formosas) perigosas deste século, a guerra das Comunidades, também designada por guerra de Toledo, que resultou na execução sumária de centenas de lideres, na morte de milhares de pessoas.
As rosas desempenham deveras um papel simbólico significativo na peça, em toda a acção dramática, de tal modo que da primeira para a segunda versão, como atrás observámos Gil Vicente lhes deu alguns retoques, foram objecto de reflexão do autor logo desde a intervenção de Camilote: Cogi en bravas montañas / esta grinalda de rosas (395) / por hazaña / entre diez mil alimañas / muy fieras muy peligrosas / cosa estraña... Ou (na versão dois, 1586): Cogi en bravas montañas / esta grinalda de rosas / con querellas (350) / de mil bravas alimañas… Depois, Costanza Ruiz: Estas rosas / son de las más olorosas. Ao que responde Flérida: Serán de casta de Hungria! – Na mitologia dos romances de cavalaria a Hungria é donde vêm os heróis. – E mais adiante na acção da peça sucede um curto diálogo: [Artada] Costanza Ruiz que es della? [Duardos] Señora qué le queréis? [Artada] Quiero rosas. [Duardos] Yo las cogeré sin ella, / de mi no las tomareis? Supomos que as rosas se constituem como símbolo representando os valores sociais e humanos em causa produzidos na revolta, luta e guerra de Toledo, dos Comuneros de Castela, conforme denotam as Cartas de Juan Lopéz de Padilla à cidade de Toledo e a sua mulher Maria Pacheco.
Destaque-se ainda a profunda tristeza de Flérida ao perceber ser o seu amor fruto do engano, pois: porque se venderdes falso pano, quedareis sem lei e será imperador o engano. No final da peça o romance, bem sublinhado pela repetição expressa pelo canto, reflecte muito bem a enorme tristeza e amargura na vitória da nobreza (beleza).
Tomando a primeira versão de Dom Duardos (1562) como referência, constatamos que a ideia de Maimonda como Liberdade é introduzida logo na entrada das figuras dos maios, por Camilote, quando afirma: …que cada vez que mirais / matais de pura afición / a aquel que os vio. (180). E perguntado pelo imperador de quem é ela filha, e que anos terá, Camilote responde ser ela por certo filha do Sol e sobre a idade diz: Daré prueba / que a poder de hermosura (220) / el tiempo vive com ella / Y la renueva. E diz ainda: Señor míos son los daños / no ajenos. // Pero ella no tien cuya (235) / y aunque vengo con ella / como suyo, / suyo soy y ella suya, / y en ver cosa tan bella / me destruyo. // Y demás de su beldad / los hados la hicieron dina / de gran fiesta / de suerte que no está / en el mundo mujer divina / sino ésta. // Pedíla a los aires tristes / que la ayudaron a criar / respondieron / con las tormentas que vistes / cuando las islas del mar / se hundieron. // A la nieve la pedi / que del sol y también della / se formó (255) / díxome: vete dahí / que quien pudo merecella / no nació.
Esta ideia da Liberdade figurada em Maimonda surge depois confirmada pelo Imperador quando diz, começando em franca ironia e acabando muito em sério: Son los milagros de amores / maravillas de Copido / oh gran dios / que a los rústicos pastores / das tu amor encendido (275) / como a nos. // Y a Camilote hace / adorar en esa muerte / por mostrar / que hace cuanto le place / y que nadie no le es fuerte / de acabar. // Tales fuerzas no tuvieron / otros dioses poderosos / que hace ser / a los que nunca se vieron / enamorados, deseosos / sin se ver. // Éstos son amores finos / y de más alto metal, / porque son / los pensamientos divinos / y también es divinal / la pasión. // Los amores generales / si dan tristeza y enojos / como sé / aunque sean speciales / primero vieron los ojos / el porqué. // Mas el nunca ver de vista / y ser presente la ausência, / y conversar, / es tan perfecta conquista / que traspasa la excelencia (305) / del amar.
E Camilote remata: Todo eso padeció / mi corazón dolorido / que por fama / desta dama se perdió (310) / y sin verla fui ardido / en viva llama.
Esta mesma ideia será exposta no início de Inês Pereira (1523), – a peça que de certo modo repete o assunto tratado em Dom Duardos recriando um mythos a partir de eventos reais e dando-lhes forma de comédia primorosa, – com Inês cantando: Quien con veros pena y muere / qué hará cuando no os viere?
Todavia, devemos salientar, ainda em Dom Duardos, a ideia incluída (1522) no conceito de Liberdade expressa nas palavras do imperador: por mostrar / que hace cuanto le place / y que nadie no le es fuerte / de acabar. (para mostrar que faz o que quer, o que lhe agrada, e ninguém será tão forte a pôr-lhe fim), uma ideia que foi retomada com a dramatização das revoltas e guerra dos camponeses da Alemanha, com uma variante importante (em 1526), com Monderigón e Liberata, porque na sua aliança teriam o mundo na mão. Assim, o tema está presente na peça a que chamámos Tragédia de Liberata (Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra), e ainda, um pouco mais tarde, em 1527, em Nau de Amores, pela voz do príncipe de Normandia em procura de Lúcida Fama: tengo de cobrar primero / la ventura en mi poder / que pueda hacer lo que quiero.
(...)