O texto desta página, de Noémio Ramos, encontra-se neste livro. Gil Vicente, o Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" Pub. Abril 2010 - isbn - 978-972-990007-5
Auto da Cananeia em data incerta, já em 1535.
No Auto da Cananeia Gil Vcente figura na acção dramática uma visão das causas, do decorrer e das consequências previsíveis na sangrenta Nova Jerusalém - a teocracia de Münster - com a intervenção também brutal e sangrenta da aliança de Carlos V (da Inquisição) com os príncipes protestantes, logo após a entrada na cena política do Papa Paulo III...
A data que consta no Auto - 1534 - estará correcta para a época, conforme a análise que fizemos em Datação e cronologia das peças de Teatro de Gil Vicente. O Auto da Cananeia segue-se a Mofina Mendes no natal de 1534. Cananeia terá sido criado nos dois meses seguintes de 1534 (datado pela anunciação), e representado antes de 25 de Março de 1534 (actual 1535).
Contudo, podemos colocar a hipótese deste Auto ainda poder ter uma data posterior, bem dentro de 1535... Os estudos mais completos o dirão. Por agora deixamos aqui o prólogo do Auto, cujo conteúdo genérico (como argumento figurado) formula o ponto de partida do mythos desta peça de Gil Vicente.
Primeiramente, entram três pastoras: a primeira per nome Silvestra lei de natureza; a segunda lei de escritura per nome Hebrea; a terceira lei de graça per nome Veredina.
Foi representado na era do Senhor de mil quinhentos e trinta e quatro anos.
[ Prólogo ]
Entra Silvestra lei de natureza, cantando:
Silvestra:Serra que tal gado tem não na subirá ninguém.
(falado) Eu sam lei de natureza e hei per nome Silvestra das gentes primeira mestra que houve na redondeza. Dos gentios sam firmeza e por pastora me tem. (canta) Nam a subirá ninguém serra que tal gado tem.
(falado) Assi que ando a pastorar cem mil bandos de veados porque os gentios são gados mui esquivos de guardar. E tão bravos de apriscar que a serra que os tem. (canta) Nam a subirá ninguém serra que tal gado tem.
(falado) Quando os quero assessegar logo cada um tresmonta de um só Deos não fazem conta senão correr e saltar. Todo seu bem é honrar diversos deoses que tem.
Com que lágrimas me vem.
(canta) Serra que tal gado tem não na subirá ninguém.
Entra Hebrea lei de escritura e diz:
Hebrea:Que gado guardas aqui nesta fragosa espessura? Silvestra: Guardo per lei de natura meu gado mas vejo em ti que tu és lei de escritura.
Hebrea: Sam pastora de Judea nacida em Monte Sinai e o meu nome é Hebrea. Silvestra: E o teu gado onde vai? Hebrea: Sempre pace em mesa alhea.
E sabes que gado é? Tudo raposos e lobos e eu te dou minha fé que é a mais falsa relé que há i nos gados todos.
Nunca me ouvirão cantar que meu gado é tão erreiro que sempre o verás andar dum pecar em outro pecar de cativeiro em cativeiro.
Que cante nam há porquê com leones et dracones nem prazer nunca me vê e se uma hora canto é Super flumina Babilonis.
Depois vou-me a Jeremias e lamentamos a par e os prantos de Isaías estas são as alegrias que meu gado anda a buscar.
Silvestra: Nam menos quebre os sentidos com meus veados diversos. Hebrea: Isso são gados perdidos os meus foram escolhidos e fezeram-se perversos.
Os patriarcas primeiros eram gados celestiais ovelhas santos carneiros e os profetas cordeiros e os de agora lobos tais.
Pois tem em mim uma pastora que nunca foi outra tal. Silvestra: Nego eu essa por agora. Hebrea: Oh se tu quisesses ora fazer-te minha igual.
[ ...ada] ...................................... [ censurado, 1562 ] Silvestra: Mas milhor em terdes grandeza. Hebrea: Cal'-te que não dizes nada que eu sam per Deos espirada e tu pola natureza. Silvestra: Parece esta que cá vem lei de graça santa e benta. Hebrea: Ela assi o representa segundo a graça que tem mas de ti valho eu setenta.
Vem a lei de graça per nome Veredina e diz cantando:
Veredina: Serranas nam hajais guerra que eu sam a flor desta serra.
(falado) Oh que malhada e que gado e que tempo e que pastora por sempre seja louvado um só Deos que no céu mora. Ele me enviou agora das alturas cá em terra (canta) pera ser flor desta serra serranas nam hajais guerra.
(falado) Ovelhas e cordeirinhos é o meu gado maior muito humildes e mansinhos e pacem polos caminhos. E montes do redentor ele é sumo pastor. (canta) E vós escusai a guerra que eu sou a flor desta serra.
(falado) Outra mais alta pastora anda na serra preciosa emperatrix gloriosa principal minha senhora. Esta dos anjos se adora santa rainha na terra. (canta) E me fez frol desta serra serranas nam hajais guerra.
(falado) Eu repasto suas cordeiras... Virgens e marterizadas que leixam frescas ribeiras e as mundanas ladeiras por serem sacrificadas. Vós outras sois já acabadas por demais é vossa guerra. (canta) Que eu sam a flor desta serra serranas nam hajais guerra.
(falado) Nam é já tempo de vós porque o tendes já comprido e se abriram os céos e lembrou-se o senhor Deos do que tinha prometido
e compria inteiramente como eternal verdade com Abraão sua semente no mesmo tempo presente porque foi sua vontade.
Hebrea: Como? Vindo é o messias? Veredina: Já veio e anda pregando insinando e declarando as divinas profecias. Hebrea: Isso estava eu esperando.
Veredina: Assi que a lei de graça há de ter todo o cuidado pastora mor de seu gado isto é per força que eu faça pois vosso giro é passado. [ Prepara a entrada das personagens... ]
Na somana que passou pera mais me confirmar Satanás mesmo o tentou polas vias que levou com Adão no seu pomar.
E ficou tão comprendido do alto saber eterno ei-lo vem que anda fogido porque há de ser escozido dos algozes do inferno.
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos: (2019) - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória. (2018) - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1. (2017) - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço. (2017) - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor. (2017) - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger). (2017) - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei. (2017) - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei. (2017) - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia. (2017) - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela. (2017) - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro. (2015) - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos. (2015) - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis. (2014) - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502. (2013) - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515. (2012) - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra. (2012) - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota. (2010) - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia. - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" (2ª Edição, 2017) (2010) - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura". (2010) - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens. (2008) - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão. - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... (2ª Edição, 2012) (2008) - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...
- Outras publicações: (2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares. (2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.
(c)2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.