A última referência de Gil Vicente a si próprio tem por título Sepultura de Gil Vicente, referindo-se ao texto morto do Livro das Obras, um incompleto esqueleto, uns poucos de ossos e a caveira, – resíduo da cabeça – que diz os versos da lápide. Pois, para se ajuizar o seu valor haverá que dar-lhe vida: acção no lugar e tempo, O gram juízo esperando / jazo aqui nesta morada / também da vida cansada / descansando.
Também queremos reafirmar o que dissemos sobre o trabalho de João Frazão em Sepultura (1991) da Quimera Editores, onde o autor traçou muito bem todo o histórico das análises do epitáfio – seria fastidioso e inútil refaze-lo pois o leitor facilmente o encontrará na Internet – e, pouco mais há para dizer que ele não tenha dito. Contudo, também queremos reafirmar o que dissemos em 2008 apenas filtrando as nossas afirmações pelo que aqui desenvolvemos em mais algum pormenor.
Pois, repetimos, o enigma do dito epitáfio há de ser lido (interpretado) no contexto da compilação das Obras (trabalho realizado?) pelo próprio autor – o Livro das Obras – e, assim, tanto a Carta Preâmbulo como o dito epitáfio, adquirem uma forma enigmática muito mais precisa mas mais ténue e subtil. Entre a suposta compilação das Obras por Gil Vicente e a Copilaçam de 1562 há certamente enormes diferenças, e fundamentais, a que nos referimos noutra publicação, assim, consideramos que o autor escreveu a Carta Preâmbulo e a Lápide para a Sepultura de Gil Vicente – ao certo nem sabemos se o desenho do autor, com o texto integrado, seria destinado a um epitáfio se a um frontispício, – e os escreveu destinando-os à sua própria compilação das Obras, realizada a mandado de el-rei: Por cujo serviço trabalhei a compilação delas com muita pena de minha velhice e glória de minha vontade, que foi sempre mais desejosa de servir a Vossa Alteza que cobiçosa de outro nenhum descanso.
Gil Vicente termina a Carta Preâmbulo, afirmando ter concluído mais este último serviço a el-rei, serviço penoso pela sua velhice e, por sua própria vontade, sem descanso algum pelo seu desejo de melhor servir a el-rei. Pois, por fim, o autor pode descansar, e até descansar eternamente, observando o Livro e questionando-o: Livro meu que esperas tu?; enquanto este, – esqueleto incompleto (mas crânio) da sua Obra – espera o gram juízo sobre si e, pela reconstituição do seu corpo completo (com a carne, pele e os sopros de vida), a partir dos ossos presentes – as Obras realizadas, por suposto todas elas presentes na compilação feita pelo autor – também espera o gram juízo sobre o autor ausente: Se meu Mestre aqui estivera tu calaras. Assim, logo após o Preâmbulo o leitor há de enfrentar o descanso do esqueleto incompleto, fragmentos do autor na sua morada, a Sepultura (o Livro das Obras):
O gram juízo esperando
jazo aqui nesta morada
também da vida cansada
descansando.
Concretizada no Livro (Sepultura) a sua morada também descansa, mas tanto o texto gravado na Lápide (frontispício da Sepultura), como a imagem do interior nela gravada (caveira e ossos), e como ele próprio (peregrino de si) de dentro do seu Livro das Obras (o esqueleto incompleto, pois, numa lápide, em geral, representa-se o corpo que está interior), também falam e, assim, é sempre o esqueleto na sepultura – o das suas obras – que se dirige ao leitor alertando-o que se prepare para Ver e, observando reflectidamente, ler bem as Obras, pois antes de entrar na Sepultura o leitor é aconselhado pela imagem na Lápide, frontispício do Livro – alguns ossos e, embora com a caveira presente, ossos de um esqueleto incompleto, – em representação da voz vinda de dentro daquela morada, Sepultura, Livro:
Pregunta-me quem fui eu
atenta bem pera mi
porque tal fui como a ti
e tal hás de ser como eu.
E pois tudo a isto vem
ó leitor de meu conselho
toma-me por teu espelho
olha-me e olha-te bem.
Nestes termos, o Livro das Obras, a compilação realizada pelo autor em 1536 – que teria por título: Sepultura de Gil Vicente – terá sido apresentado ao rei pela Carta Preâmbulo, abrindo com a Lápide (cuja imagem juntámos), pretendendo (descansado e descansando) que o leitor do futuro faça dele um melhor (o gram) juízo (dos textos das Obras, o seu esqueleto incompleto), para o qual lhe recomenda (entrando na leitura das Obras), a necessidade de uma grande reflexão, – olha-me e olha-te bem – uma reflexão muito atenta sobre os textos das Obras. Entrando, após ser alertado de que não vai encontrar senão, e apenas, resíduos (a caveira e alguns ossos), sem músculos, sem vísceras, sem nervos, sem pele, em suma, sem vida e, portanto não está aí (por completo) Gil Vicente: isso mesmo havia ficado expresso pelo autor no Preâmbulo, ao escrever: Pois rústico peregrino de mim, que espero eu?; e do lado de fora do livro questionando: Livro meu que esperas tu?... Concluindo o Livro na sua resposta, dizendo: Se meu Mestre aqui estivera, tu calaras.
Pois rústico peregrino de mim, que espero eu? Livro meu, que esperas tu? Porém te rogo que quando o ignorante malicioso te repreender, que lhe digas: Se meu Mestre aqui estivera, tu calaras.
De facto, Gil Vicente não está por completo nos ossos residuais do seu esqueleto. O autor, peregrino de si próprio, vagueia, completado pela imaginação do leitor atento observando o espelho (as obras), – atenta bem para mim, – considerando no seu ser rústico a sua orgulhosa humildade. Pois, enquanto texto morto, não está nele o seu autor, contudo ele será presente ao leitor através do espelho. Ele estará lá (porque peregrino de si), não pela imagem dada no texto morto, mas ó leitor de meu conselho, toma-me por teu espelho, numa imagem bem reflectida, com certeza algo inversa – no filósofo pelo parvo, no ateu (ou agnóstico) pelo religioso, no crítico pelo panegirista do sistema e sua política, ou, resumindo: (por Platão, em Fedro, 277c) oferecendo à alma complexa, discursos complexos e com toda a espécie de harmonias, e simples, à alma simples – numa imagem tornada viva a partir daquele seu esqueleto incompleto, que constitui o texto das Obras, por seu conselho concretizada pelo leitor observando o seu reflexo reflectidamente.
Na verdade, pouco se acrescenta ao que tem sido publicado, porém a este texto se deve acrescentar o que publicámos em 2008 em Gil Vicente e Platão, Arte e Dialéctica sobre esta questão da Sepultura de Gil Vicente.
Num lodo de uma elite social (inculta) pedante, que pretende aculturar a si algumas ovelhas dispersas, se vai afundando ainda mais a Sepultura de Gil Vicente – contentor do esqueleto incompleto, continente da Obra – pois, por mais que tenhamos vindo a insistir, desde há seis anos, na necessidade reVer Gil Vicente, não se vislumbra ainda a forma de salvar o contentor – e, aberto o continente, rever todo o seu conteúdo, libertando aos poucos os olhos da alma – da espécie de lodo bárbaro em que está atolada e levando-a às alturas (parafraseando Platão na República).