Esta peça destaca-se por celebrar um Triunfo: a homenagem dos vencedores. Talvez por isso o texto seja em grande parte para recitação (como que cantando). Numa manifestação plena de ironia – não somente pelo facto de Portugal estar figurado na peça na personagem do Inverno, como pelas suas lamentações de infortúnio – os homenageados podem não estar junto do presépio, mas estará a Família Real portuguesa figurando os Reis Católicos, são os figurantes fundamentais. Na época terão sido os reis de Portugal a figurar os Reis Católicos, eles são os representantes de Deus na Terra, também eles, como os figurados, substituindo as velhas mitologias, gregas e romanas, clássicas ou outras, estabelecem um novo Poder no Mundo.
Dito pelo Serafim, ao mesmo tempo que exalta o nascimento do menino:
Nuevo gozo, nueva gloria / criada en el seno eterno / es llegada, / gran mudanza, gran vitoria / por nuestro Dios sempiterno / nos es dada. / La clara luz anciana / mudada, hecha moderna, / en nuevo traje, / y la bondad soberana / se alegra en la edad tierna / sin ultraje.
Contudo, será Júpiter a confirmar, após anunciar a adoração dos deuses da antiguidade, ao novo Deus, que conclui afirmando:
Todos van hoy adorar / al criador poderoso / que es nacido: / las aves con su cantar, / y el ganado selvinoso / con bramido. / Los salvajinos bestiales / con olicorne pandero / dan loores, / y los brutos animales / adoran aquel cordero / y los pastores. Não podendo afirmar que os pastores (figurantes dos Reis Católicos, junto do altar) são adorados, diz: os animais selvagens adoram aquele cordeiro e os pastores, guardando para sua defesa a afirmação que os pastores também adoram aquele cordeiro.
No final, Manuel I, figurado na representação por David, submete-se ao novo Poder, dizendo: Sacrificium Deo es / el spíritu atribulado / y el corazón contrito / el cual pido que me des / andando con mi ganado / por el tu poder bendito.
Na peça os quatro Tempos são figurações das nações: (1) o Inverno é Portugal; (2) o Verão a Espanha; (3) o Estio a Itália; e (4) o Outono é a França. No seu ciclo, os Tempos pertencem agora à Espanha, celebra-se nesta peça o Triunfo do Verão. Em 1529 será então celebrado o mesmo triunfo da Espanha, com Carlos V logo após as suas vitórias em Itália, a celebração da paz com o Papa e a França, depois assinada pelas damas (Luísa de Sabóia e Margarida de Habsburgo) em Cambrai a 3 de Agosto, mas pelo Triunfo do Inverno e, com extrema ironia Gil Vicente afirma em 1529, pela acção dramática que o Triunfo do Verão (Primavera) já sucedeu, foi celebrado antes, em 1503, transpondo para 1529 o mesmo Triunfo: repetindo e adaptando as cenas (possivelmente não apenas a letra dos versos) mais de um quarto de século depois. Esta transposição realizada por Gil Vicente – do Triunfo do Verão de 1503 para 1529 – constitui a prova cabal de que a nossa interpretação de Quatro Tempos está correcta, porque, em Inverno, o infortúnio de Portugal (e não um triunfo do Verão) está bem chapado ao ser vencido pela tempestade, pela má condução do governo do país (da nau) promovendo os incapazes, só porque são seus amigos ou de classe, ontem como hoje.
Em Quatro Tempos, o Outono (França), propõe a cantiga que vão cantando, ay de la noble villa de Pariz – ele não se submete aos Reis Católicos – e após a cantiga abandona a cena, porém, não havia ainda uma absoluta certeza quanto ao desfecho da guerra que decorria em Itália, mas qualquer que fosse o seu desfecho final, pela análise política sabia-se que o Poder dos Reis Católicos se viria a impor contra a França: ay de la noble villa de Pariz.
O Verão (Espanha), trata de afastar o Inverno (Portugal), Afuera, afuera ñubrados, / nebrinas y ventisqueros, / reverdeen los oteros, / los valles, sierras y prados, / reventado sea el frío / y su ñatío..., depois, vangloria-se do seu Poder, ostenta a sua grandeza e domínio, como a capacidade de se impor aos outros, mas também se admira a si próprio: Cuantas más veces me miro / y me remiro / véome tan quillotrado / tan llucio y bien asombrado / que nunca lacer me tiro. De resto é o delírio descritivo do Verão.
O Estio (Itália) lamenta-se do seu estado: Terrible fiebre ifimera / hética y fiebre podrida / me traen seca la vida / acosándome que muera. Porém, em resposta directa ao Verão, manifesta o orgulho da sua identidade cultural que se impõe em Espanha, dizendo: Calla, calla verdolete, / que, bueno es el tiempo mío. / Porque asesa tus locuras, / tus vanas flores y rosas, / y otras cosas coriosas / que en ti no son seguras.
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