E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
o projecto
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Data das Obras de Gil Vicente
- Datação e cronologia das peças de teatro, os autos de Gil Vicente
      Antes de expor a cronologia das peças e a sua datação aproximada, convém lembrar alguns pormenores que são indispensáveis para compreender alguns dos erros mais habituais, alguns na própria origem, – cometidos por quem terá escrito a didascália inicial na edição – outros na sua leitura posterior.
    Assim, até ao ano de 1556, em Portugal, o início do ano não tinha uma data certa, podia considerar-se o seu início em 25 de Março, pelo ano da anunciação, e este era o preferido pela Igreja... Neste caso, o dia 24 de Março de 1534 era seguido pelo dia 25 de Março de 1535; o mês de Março ficava distribuído pelos dois anos; os meses de Janeiro e Fevereiro, assim como a maior parte do mês de Março, ficavam no fim de cada ano, e não no início.

      Todavia, outras datas para marcar o início do ano estavam também em uso, assim como:
  — pelo nascimento, em que o dia 25 de Dezembro marca o início do ano;
  — pela circuncisão, que era também o início na calendário Juliano, com início a 1 de Janeiro…
  — pela anunciação, 25 Março (9 meses antes do nascimento), que era também o início do ano económico com a Primavera;

      Embora o dia de Ano Novo se comemorasse em 1 de Janeiro, na prática, era comum a mudança de ano efectuar-se a 25 de Março, com o início do ano económico, ou mesmo a 1 de Abril (como em Inglaterra até há bem pouco tempo).

      Em Portugal, como em alguns outros países da Europa, só em 1556 é que o ano se passou a iniciar, obrigatoriamente, em 1 de Janeiro, pois, embora isso mesmo já tivesse sido decretado pelo rei D. João I, na prática continuou-se a usar em sectores diferentes, o início do ano em datas diferentes.
      Em Veneza, esta mudança obrigatória para todos, deu-se em 1522, mas noutros países só muito mais tarde.

      Esta alteração não está relacionada com a adopção do calendário Gregoriano, que se realizou em 1582, e que foi uma alteração para aferição do calendário em relação às estações do ano, que então correspondeu a um salto: ao dia 4 de Outubro de 1582 seguiu-se o dia 15 de Outubro de 1582, o objectivo foi acertar o calendário em relação ao número de dias (horas, segundos), à medida mais exacta do ano, para recolocar as estações do ano no seu lugar próprio...

      Tornam-se assim mais evidentes os erros que podem ter derivado, primeiro da datação inicial, e depois, quando esta não tinha sido referenciada, pela datação então colocada em 1561 ou 62, além da memória das pessoas que tiveram de colocar datas, 25 anos ou quase sessenta anos mais tarde.

      A agravar ainda, supomos alguma confusão que possa ter havido entre os autos, como Festa e Feira, ou Feira com Feira da Ladra (também conhecido por Escrivães do Pelourinho) ou na identificação de Exortação, Fadas, Fama, e outros…

     Todavia, há que considerar que além das datas haverá alguns erros também na identificação das localidades, ou nas circunstâncias em que os autos se realizaram...
     Considerar apenas como erros a datação impressa, como terá acontecido, considerar a data errada por se considerarem correctas as circunstâncias descritas (porquê?), pode ser ainda pior erro.
      O curto texto de início de cada obra, que descreve as motivações e circunstâncias da encenação, na maioria dos casos, mais parece ter sido criado pela pesquisa do editor (Luís Vicente?), pela leitura da peça, do que pelo autor.

A datação de "O Clérigo da Beira"

        Ao contrário do Auto da Alma, que alguns especialistas têm datado de forma diferente daquela que assinala a didascália, sem que para isso apresentem argumentos de facto válidos, esta peça tem sido datada de 1529 com alguns argumentos fortes e aparentemente válidos. Cabe-nos, portanto, esclarecer esta questão, desfazendo as aparências dos argumentos que colocam a peça numa data mais tardia em vez de 1526, como consta da Copilaçam.
        O autor responsável pelos argumentos que afirmam 1529 como a data da peça, é o investigador a quem nós - todos os portugueses - devemos os estudos mais amplos e profundos sobre a vida de Gil Vicente e sobre as pessoas referenciadas nas suas peças de teatro. Referimo-nos a Anselmo Braamcamp Freire e, são dois os argumentos que apresenta: (1) referir a peça que o embaixador do imperador no momento da representação é castelhano, e que o embaixador em 1526 não era castelhano, era Carlos Popeto, senhor de La Chaulx; e (2) a nomeação de Francisco Tibau como Corregedor do Crime de Lisboa só datar de 1529, e ser ele referido no decorrer da peça já no exercício do cargo.

        Analisemos cada questão estudando na origem a construção dos argumentos:
(1) O esclarecimento da primeira questão, a do embaixador, está acessível a todos na interpretação do texto da peça. Tanto a tese que quer afirmar o ano de 1526, como a que quer considerar o de 1529, têm por base os seguintes versos:

[Duarte]         Qual é o mor namorado     (800)
                    de Portugal e Castela?
[Pedreanes]       É o conde de Penela
                    mas anda dissimulado
                    por amor da sua estrela.

[Almeida]          O senhor embaixador          (805)
                    do césar emperador…
                    Creo que naceu no céu.
                    Mas se na terra naceu
                    qual planeta em seu favor
                    foi a que lhe aconteceu?     (810)

[Pedreanes]        Naceu uma noite clara
                    quando a lua aparecia
                    e Vénus tomava a vara
                    com que as graças repartia
                    como em ele se declara.      (815)

                    E estando assi lustrosa
                    o fez tam sábio e humano
                    de condição tam graciosa
                    que nam tem em nada grosa
                    senam só ser castelhano.     (820)

[Duarte]             O conde de Marialva
                    sabes quanto há de viver?
[Pedreanes]        Mau é isso de saber
                    que ele nam é flor de malva
                    que apodrece sem chover.    (825)

                    Com todas suas feridas

                    e muito enferma canseira
                    contratou-se de maneira
                    que Deos lhe deve três vidas
                    e esta é inda a primeira.      (830)

        Pelos estudos que realizámos, com recurso à História, para esclarecimento e análise das várias peças de teatro do século xvi, sabemos, pelas referências dos cronistas, que o primeiro embaixador do imperador apresentado a João III de Portugal em 1522, foi Carlos Popeto, senhor de La Chaulx [ Crónica de Dom João III, Francisco de Andrade, BNP, Ed.1613, folha 26 e 26v. ] e que, desde 8 de Fevereiro de 1528 e até 1532 o embaixador do imperador foi Lopo Hurtado de Mendonça (castelhano). Todavia, também sabemos que para o contrato de casamento (em Portugal) com a princesa Isabel, em 1525 e 1526, foram dois os embaixadores nomeados pela mesma procuração, ambos com os mesmos poderes, e o outro além de Carlos Popeto, [Corpus documental de Carlos V, Volume 5 - dirigido por Manuel Fernández Alvarez. Edição da Universidade de Salamanca, 1973, p.102 a 106.] foi Juan de Zuñiga (João de Estuniga), [Anais de El-rei Dom João terceiro, Frei Luís de Sousa.] um nobre cavaleiro castelhano da Ordem de Santiago que, repetimos, também nomeado para representar o Imperador em todos os tramites do seu contrato de casamento com Isabel de Portugal. Contudo, vamos simplesmente demonstrar que Gil Vicente não se refere, nestes versos, a um embaixador castelhano.

        Pelo que referimos, apenas um dos embaixadores não é castelhano. Ele é o senhor de La Chaulx, Carlos Popeto (Popet, Monsiur de la Xaus, ou Laxao nos documentos em castelhano do imperador), do conselho do imperador e seu camareiro, natural do Brabante, que de facto não era castelhano e, que segundo Braamcamp Freire, seria o embaixador em Portugal ainda em finais de 1526, aliás, ainda seria o embaixador no início de 1528.
        Portanto, admitindo que o embaixador era castelhano, pareceria válido o argumento do investigador da vida de Gil Vicente, de que nesta peça se estaria a referir a Lopo Hurtado em 1529, [
José Camões, em As Obras de Gil Vicente (volume 5), CET-INCM, 2002, foge ao seu rigor habitual e segue o que afirma Braamcamp Freire, aceitando Lopo Hurtado como embaixador, e portanto, a data de 1529 para esta peça. (p. 69 e 354) ] se se demonstrasse que Juan de Zuñiga em 1526 estaria já ausente de Portugal. Contudo, queremos sublinhar o facto de que numa peça de teatro cómica, comédia ou farsa, nem tudo o que nela se afirma se pode ler à letra, e neste caso, que não tem em nada grosa / senão só ser castelhano, parece-nos que poderá muito bem ser a conclusão irónica do extenso elogio ao embaixador que não era castelhano. Pois, na peça, a personagem fala por Pedreanes - o adivinho que sabe, descobre ou põe tudo a descoberto - todavia, quando se está a referir aos segredos dos cortesãos presentes, ou ausentes, todas as referências que dá têm por objectivo, ou como destino, o prazer do gozo e riso do público.

        No contexto em que surge o elogio ao embaixador, o ambiente já é de animada brincadeira, como se pode ler nas palavras sobre o conde de Penela e o conde de Marialva, e todos os que se lhe seguem, e assim, a referência ao embaixador Carlos Popeto não poderia ficar apenas pelo basto elogio, havia que incluir no texto da fala de Pedreanes alguma brincadeira. E que maior gozo, no contexto do elogio, senão a ironia que, sublinha e pronuncia ainda mais o elogio, aos olhos dos portugueses, ao dizer que o embaixador não tinha nada de grosseiro senão só ser castelhano, quando ele o não era? Como resultado obtém o riso garantido do público presente. A confirmar a ironia está a pergunta de Almeida: Mas se na terra nasceu / qual planeta em seu favor / foi a que lhe aconteceu? Pois, se nasceu na terra (mas longe de Castela), o que é que houve, em seu favor, para vir a ser embaixador de Castela (castelhano) e, assim, a resposta na explicação vai buscar Venus para lembrar o namorado (Portugal e Castela) e o casamento de Carlos e Isabel: e Vénus tomava a vara / com que as graças repartia / como em ele se declara... Aliás no próprio contexto, porque o conde de Penela anda dissimulado, logo, às claras, o maior namorado de Portugal e Castela é o embaixador do imperador, porque ele é exactamente aquele que antes havia contribuído pessoalmente para o casamento de Isabel de Portugal com Carlos de Castela (o Imperador) e jurado na cerimónia por Carlos V na presença de Isabel. Portanto, Carlos Popeto o mor namorado / de Portugal e Castela, assim, tal como Almeida, a personagem, pretende corrigir a resposta de Pedreanes à pergunta de Duarte, fazendo um elogio: O senhor embaixador / do César imperador! … / Creio que nasceu no céu… Para depois fazer ele, a outra pergunta a Pedreanes: mas se na terra nasceu / qual planeta em seu favor / foi a que lhe aconteceu?

        Concluíndo, não seria necessária tanta conversa pois muito pouco há para ler à letra nas obras de Gil Vicente, e mais, neste caso é até demasiado evidente que não devemos (não podemos) ler à letra - a questão do embaixador ser castelhano, - pela mesma razão que não devemos acreditar que o Conde Marialva está ainda na primeira, das três vidas que Deus lhe ficou a dever, ou que o Conde de Penela
anda dissimulado por amor da sua estrela, ou ainda que o Vasco de Fóis: Quando foi a do Selado / era ele mancebo já, / mas nam era tam barbado. Pois vejamos que, neste último caso que citámos, qualquer cientista das letras (ou de outra ciência) avaliará que o homem, apesar de tão barbado, não podia ser já mancebo quando foi a do Salado, senão ele teria de ter em 1526 uma idade superior a duzentos (200) anos, pois não há a menor dúvida que a batalha do Salado constitui um bem documentado facto histórico, datado de Outubro de 1340.
        Neste caso, o carácter grosseiro atribuído pelo povo português da época aos castelhanos (ainda que possa ser presumido deste e de outros contextos) e o contexto em que surge a afirmação sobre o embaixador ser castelhano, são por demais suficientes para perceber (e demonstrar) que se trata de simples ironia.

        (2) Francisco Tibau (Tibaut) é apresentado na peça como Corregedor. Isso está correcto. Como está correcto que quem pagou pelo escravo foi ele: Corregedor Tibao é (445) / ele comprai mi primeiro / quando já pagá a rinheiro / deitá a mi fero na pé. Mas, como se pode ler mais adiante, na voz de Pedreanes dirigida a Gonçalo: Vai pedir o chapeirão (775) / ao negro do Maracote. Isto é, o Negro - o escravo negro com o ferro no pé - é propriedade do Maracote.
        Tudo isto está correcto e, está correcto, exactamente porque se refere a 1526.
        Antes de entrarmos na argumentação, devemos afirmar, constatando pelas palavras de Pedreanes, que o Negro está sob cativeiro, isto porque, o verso, já a mi forro nam sá catibo, dependendo da pontuação, permite as duas interpretações: ser ou não ser cativo. Braamcamp Freire considerou que o Negro seria livre...


 
[Como veremos mais adiante, o Negro nesta peça é uma figuração de Lutero e, ao tempo em que a peça estava a ser escrita, havia um mandado de captura do imperador e da dieta alemã contra ele e todos os luteranos, pelo edito de Worms de 18 de Abril de 1521. Porém, Lutero está cativo, sob a protecção dos duques da Saxónia (desde Frederico o Sábio) e desloca-se livremente, como é o caso deste Negro. Mas como Carlos V precisava do apoio dos príncipes luteranos para a guerra contra o Papa e a Liga de Cognac, na dieta de Spira, em 27 de Agosto de 1526, renunciou à aplicação do edito de Worms. No Clérigo da Beira há sinais de contexto de que esta decisão venha a ser tomada em breve.]

         ....
não interpretando conforme aquilo que se lê no contexto da totalidade da peça e, por isso, pontuando assim erradamente o verso: Já a mi forro! Nam sá catibo...

        Como sabemos, os cargos do Estado passavam-se por herança, dote, oferta real, e até eram transacionados (no Portugal actual ainda não é diferente). Acreditamos que em Agosto ou Setembro de 1526 Francisco Tibau já teria casado com Leonor Gonçalves Maracote, filha de Rui Gonçalves Maracote, Corregedor do Crime de Lisboa. Rui Maracote não tinha outros filhos e Tibau tinha recebido como oferta (dote) de casamento este e outros ofícios da parte do seu sogro e assim os exercía.
        Contudo, só em 1529 o Rui Maracote escreveu a sua carta de renúncia ao cargo, para assim se retirar da prática do ofício, fazendo sentir ao rei que eram necessárias duas pessoas para assegurarem aquele serviço, porque o ofício estaria já a ser exercido também pelo seu genro, pois com toda a certeza pelos dois, e só assim Tibau obtém a nomeação oficial de um cargo que vinha exercendo por ser propriedade sua desde o seu casamento.
        Pensamos ser este o sentido da carta de nomeação em 1529, de 12 de Setembro, quando diz “…para as cousas da justiça serem melhor feitas e ministradas, e as partes com mais brevidade despachadas, era necessário acrescentar mais um corregedor dos feitos crimes, além do outro que até aqui havia, para serem dois, houve por bem de o acrescentar…”,  [
Transcrição do documento feita por Braamcamp Freire. Pode ler-se em: Gil Vicente trovador, Mestre da balança, 2ª Edição Revista do Ocidente, 1944, p. 258 e respectivas anotações.] e logo em 26 de Setembro nomear, também para o mesmo cargo, Álvaro Estevens.
        Na verdade, é o trabalho exercido pelos dois Corregedores que consta na peça. Pois nos primeiros versos da entrada em cena do Negro, logo após o trocadilho da fonética, pelo sintagma da Corte com o Maracote, ele explica que quem pagou a sua compra foi Francisco Tibau, no exercício de Corregedor, Corregedor Tibao é…, mas por traição e em má hora - ele pertence ao Maracote, de quem é de facto propriedade - que é do Maracote, o que é sabido oficialmente, pois é corrente que o Maracote é o senhor daquele cargo (e que em Setembro de 1529 o cargo deixa de ser seu), e isto mesmo se pode verificar, mais adiante na peça, pelas palavras de Pedreanes: Vai pedir o chapeirão (775) / ao negro do Maracote.

[Gonçalo]          Dize Negro, és da corte?
[Negro]              Quesso?
[Gonçalo]                               S’és da corte.
[Negro]              Já a mi forro nam! Sá catibo.
                    Boso conhecê Maracote?

                    Corregedor Tibao é…            (445)
                    Ele comprai mi primeiro,
                    quando já pagá a rinheiro
                    deitá a mi fero na pé.

                    É masa tredora aquele
                    aramá que té ro Maracote.    (450)

        Corregedor Tibao é…, quer dizer: Francisco Tibau (também) é Corregedor!
E foi ele que pagou o Negro a dinheiro, - ele o tornou cativo - pois ele faz o trabalho de Maracote. Estes versos são como que um alerta daquela situação irregular (a falta de uma nomeação oficial). Ao fim e ao cabo, a figuração simbólica de uma situação também irregular e histórica: a simulação do sequestro de Lutero organizado pelo duque Frederico o Sábio da Saxónia, ficando o monge negro em cativeiro no seu castelo de Wartburg, mas gozando de plena liberdade, à revelia (traindo a vontade) do imperador, o senhor titular da Alemanha. Assim está conforme o confronto entre o Maracote, titular do ofício de Corregedor - do crime, porque na didascália se diz que o Negro é um grande ladrão - e os actos praticados (masa tredora aquele) por Francisco Tibau no exercício desse ofício: deitá a mi fero na pé…

        As referências históricas de Portugal que aqui deixamos devemos a Anselmo Braamcamp Freire, [Braamcamp Freire. Pode ler-se em: Gil Vicente trovador, Mestre da balança, 2ª Edição Revista do Ocidente, 1944, p. 258 e seguintes, em especial a nota com o número 687.] a ele estamos em dívida por quase todo o trabalho de pesquisa histórica, - e as suas pesquisas foram todas comprovadas por documentação - incluindo a oferta do cargo de Corregedor do Crime de Lisboa a Francisco Tibau pelo seu casamento, todavia o investigador, talvez convencido da verdade do seu primeiro raciocínio, não chegou a procurar a data do casamento de Francisco Tibau com a filha de Rui Gonçalves Maracote que, com toda a certeza é anterior à criação e representação da peça em 1526. Deixamos essa tarefa aos historiadores, que a nós basta-nos o testemunho histórico de Gil Vicente no mythos da peça.

        (3) Ainda um argumento: a intervenção de Gil Vicente sobre Nuno Ribeiro, cavaleiro da casa real, vem na sequência de uma outra já realizada em Almocreves em 1525, quando ele ainda exercia plenamente o cargo de pagador das moradias do reino, pois segundo nos parece, terá sido denunciado publicamente por corrupção. Não sabemos se terá correspondido à verdade ou se não, porém para o autor das peças o fazer, ou sublinhar uma denúncia de corrupção vinda de outros, com certeza algo se passava com o uso que Nuno Ribeiro fazia do seu ofício.

[Pero Vaz]         Arre mulo namorado!

                    Que custaste no mercado

                    sete mil e novecentos
                    e um traque pera o siseiro...
                    Apre ruço acrecentado     
(355)
                    a moradia de quinhentos
                    paga per Nuno Ribeiro.

                    Dix pera a paga e pera ti…

        Nestes versos de 1525, do Auto dos Almocreves, Nuno Ribeiro é acusado de pagar dez (dix) pela moradia de quinhentos que custou no mercado sete mil e novecentos: Dez, ou Dix para a paga e para ti… Atente-se que Pero Vaz é francês, é nessa peça uma figuração do rei Francisco I, então preso em Madrid, [Daí que - ao ver Pero Vaz - o Fidalgo mostre um enorme espanto, afirmando: Essa é a mais nova aravia / de almocreve que eu vi / dou-te vinte mil cruzados. Uma quantia enorme e absurda para qualquer serviço de transporte, além de tudo o resto.] que como Carlos V, na figura de Vasco Afonso, em 1525, tenta obter a aliança de Henrique VIII de Inglaterra, o primeiro Fidalgo de Almocreves.

        Nuno Ribeiro foi substituído no cargo porque, em 1527, o pagador das moradias já era Heitor Henriques. [
Braamcamp Freire. Pode ler-se em anotação à pagina 241 de: Gil Vicente trovador, Mestre da balança, 2ª Edição Revista do Ocidente, 1944]. Mas em 25 de Junho de 1526 Nuno Ribeiro ainda era o pagador das moradias, portanto, em 1529, três anos depois, não haveria motivação para que na peça se fizesse referência à sua ganância pelo dinheiro. Pelo contrário, no Outono de 1526, pela representação de Pedreanes, estará ainda bem presente no público tudo aquilo que se possa ter passado, ou que se estará ainda a passar, com Nuno Ribeiro, e assim, fará ainda sentido receber de Gil Vicente, tanto na fala do Clérigo como na do Negro, uma crítica cujas palavras reflectem um juízo muito negativo sobre o modo como geria, ou se apropriava do dinheiro alheio, dos dinheiros públicos e, em má hora, até do dinheiro do gaiteiro.

[Clérigo]            Laudate Deum omnes gentes
                    laudate Nuno Ribeiro
                    que nunca paga dinheiro      (115)
                    e sempre arreganha os dentes.

[Filho]               Levavi oculos meos
                    vi que os dinheiros alheios
                    muitos os repartem crus.
                    (…)

[Negro]              Bolsa Nuna Ribeiro
                    home vai buscá rinheiro
                    a toro, ere rize:
                    já rinheiro feito é…
                    Aramá que té ro gaitero.     (560)


         Podemos traduzir a fala do Negro por: A Bolsa de Nuno Ribeiro [essa sim!] / o homem vai buscar dinheiro / a todos. Ele diz: / Já dinheiro feito é!... / Em hora má, que até do gaiteiro…

         (4) Por último, o argumento mais importante porque globaliza a questão.
         Esta peça trata ainda do casamento de Carlos e Isabel (de facto em Sevilha, a 11 de Março de 1526), pelos amores entre Portugal e Castela, pelos maiores enamorados deste par, dando certa sequência a Frágua do Amor e a Templo de Apolo. Porque a questão é colocada por Almeida a Pedreanes (versos 780 a 795):  Já nós somos sabedores / que é muito teu poder…, / e queríamos saber / planetas dalguns senhores / e sinos de seu nacer. // E a que são inclinados / per sua costolação, / e quais são mais namorados / e assi, os que o nam são, / porque são desnamorados. // E também as condições…,  / de que planeta lhes vem, / declarado por itém….

        Já nos referimos - Qual é o mor namorado / de Portugal e Castela? - a Carlos Popeto (embaixador), mas como adiante comprovaremos (Braamcamp Freire), todos os outros portugueses da Corte citados estão envolvidos (ou não) nessa aliança - pois sublinhamos, e quais são mais namorados / e assi, os que o nam são, / porque são desnamorados, - pelos amores, mas sobretudo, através da Fazenda pública, o desmesurado dote de Isabel, para financiar as ambições de Carlos V e, desde já, a guerra que se prepara, como também está implícito em Templo de Apolo quando os romeiros Mundo, Poderoso Vencimento, Ceptro Omnipotente e Tempo Glorioso, são despachados para a Fazenda e para o Tesouro de Portugal.


[Negro]         Fernand’Álvaro m’acontenta…
                   Ele nunca rize não,
                   logo chama cá crivão:
                   crivaninhai esormenta.
 
                   Toma rinheiro, vás ambora.
(565)
                   Voso home de be que busacai?
                   Mi da cureiro agarbá sai.
                   Boso que buscai corte agora?
 
                   Buscai a rei jão João
                   pagá minha casaramento.
(570)
                   Dá cá moso, trae esormento,
                   crivaninhai boso crivão.
 
                   Home tomai: um, dos, quatro, sete,
                   vás ambora, turo, turo,
                   sua rinheiro sa seguro…,
(575)
                   mioro que ele promete.





- Este texto de Noémio Ramos foi transcrito de:
"Gil Vicente, O Clérigo da Beira
- o povo espoliado - em pelota."
Isbn - 978-972-990009-9
Pub. Março de 2012 -


- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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O Teatro de Gil Vicente
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