Alguns investigadores têm lido na obra dramática de Gil Vicente, e apresentado como trabalho científico, aquilo que dizem ser o carácter profundamente religioso do autor. Contudo, a sua autobiografia só pode ser lida na obra se de tal o autor nos tiver dado uma referência exacta, ou mesmo figurada. Ora, o autor não nos quis dar a conhecer praticamente nada da sua biografia, a não ser aquilo que referiu nas obras, todavia, apenas quando disso mesmo faz referência, ou se figura, mas nunca rebuscando-o em outras personagens (muito menos nas alegóricas), porque, quaisquer outras personagens que não tenham sido assinaladas com algo da sua pessoa por Gil Vicente, de modo nenhum pretendem personificar ou caracterizar o autor.
Ler uma devoção religiosa em Gil Vicente por intervenções de personagens que não figuram na peça o próprio autor é o mesmo que avaliar a devoção de Miguel Ângelo pela sua pintura na Capela Sistina, pelo sentido das figuras representadas, ou pelas suas esculturas religiosas. Ou a devoção de Leonardo da Vinci pelo sentido da sua pintura, ou pela cena ou figuras pintadas, por exemplo na Última Ceia, na Madona dos Rochedos ou qualquer outra. Quando sabemos que este último era agnóstico e o escultor também não tinha grandes preocupações religiosas…
Em verdade a religiosidade de uma qualquer obra — se pode existir — não depende tanto da religiosidade do seu autor, mas do seu artifício, da sua capacidade de criar ilusão, em suma, das suas capacidades artísticas, mas não e nunca de uma maior ou menor religiosidade do autor ou mesmo da sua religião. Se assim fosse os melhores artistas da Igreja seriam as pessoas mais santas, ou mesmo os seus santos. Admitimos poderem existir, ocasionalmente, tais fenómenos, pois até encontramos obras de Arte religiosa realizadas por frades e freiras. Mas apesar disso, constatamos apenas que as obras da Arte, são feitos humanos, actividades criativas do homem em áreas diversas (artifícios bem longe da religião) e, os tais cientistas das letras, das Artes e humanidades, que vislumbram religiosidade em obras de Arte (ou mesmo em textos menos artísticos), ou que através dos objectos de Arte produzidos por alguém com o fim de dar algum prazer sensível e inteligível ao seu público, vislumbram religiosidade no próprio autor, deviam ter disso perfeita consciência.