Texto completo da Carta de Santarém |
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* Carta que Gil Vicente mandou de Santarém a el-rei dom João, o terceiro do nome, estando sua alteza em Palmela, sobre o tremor da terra que foi a 26 de Janeiro de 1531. |
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Senhor: |
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Os frades de cá não me contentaram, nem em púlpito, nem em prática, sobre esta tormenta da terra que ora passou, porque não abastava o espanto da gente: mas ainda eles lhe afirmavam duas cousas, que os mais fazia esmorecer a primeira, que pelos grandes pecados que em Portugal se faziam, a ira de Deus fizera aquilo, e não que fosse curso natural, nomeando logo os pecados por que fora: em que pareceu que estava neles mais soma de ignorância que de graça do Espírito santo. |
prática, conversapor que fora, causadores ignorância, falta de Razão graça do ES, falta de Fé |
O segundo espantalho que à gente puseram, foi: que quando aquele terramoto partiu, ficava já outro de caminho, senão quanto era maior, e que seria com eles à quinta-feira uma hora depois de meio dia, creu o povo nisto de feição, que logo o saíram a receber por esses olivais, e ainda o lá esperam. |
espantalho, enganode feição, de tal modo |
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E juntos estes padres a meu rogo na crasta de São Francisco desta vila, sobre estas duas proposições lhe fiz uma fala na maneira seguinte. |
na crasta, no claustrofala, discurso não escrito |
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Reverendos padres, |
(Pela ideologia da Igreja) |
o altíssimo e soberano Deus nosso tem dois mundos: |
(sublinha a dualidade) |
o primeiro foi de sempre e para sempre, |
(dirigindo-se ao objectivo) |
repouso permanecente, |
(a ideia de quietude em oposição ao terramoto) |
prazer avondoso, |
avondoso, abundante |
Este segundo em que vivemos, |
(a Terra, pelo contrário) |
/S/ todo sem repouso, |
[scilicet], como sabemos |
sem firmeza certa, |
(expõe a ideia de estar tudo inseguro, sempre sujeito a catástrofes) ? |
todo breve, |
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temeroso, |
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imperfeito, |
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para que por estes contrários sejam conhecidas as perfeições da glória do segre primeiro. |
segre, mundo |
E para que melhor sintam suas pacíficas concordâncias, |
(na Terra, Deus assim fez) |
todos os movimentos que neste orbe criou, |
orbe, mundo(litigio de contrários) |
e porque não quis que nenhuma cousa tivesse perfeita duração sobre a face da terra, |
(sempre um tempo de vida determinado) |
estabeleceu na ordem do mundo que umas cousas dessem fim às outras, |
(sempre da vida à morte) |
e que todo o género de cousa tivesse seu contrário, |
(sempre do melhor ao pior) Verão, Primavera |
e contra a vaidade humana a esperança da morte, |
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e contra a força a velhice, |
fortuna, sorte, azar |
e contra os formosos templos e sumptuosos edifícios, |
(e assim surge a necessidade do terramoto) |
que por muitas vezes em diversas partes tem posto por terra muitos edifícios e cidades, |
(que sempre se conheceu) |
e por serem acontecimentos que procedem da natureza não foram escritos, |
(Pelo confronto entre: o não escrito = ordem natural; |
como escreveram todos aqueles que foram por milagre, |
e que ficou escrito = ordem divina) |
como templum pacis de Roma, |
Templo da Paz (uma crença na época) ponto, momento |
E [ como escreveram ] o sovertimento das cinco cidades mui populosas de Sodoma,e dos Egípcios no mar Ruivo, |
sovertimento, derrubeRuivo, Vermelho |
e a destruição dos que adoraram o bezerro, |
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e o sovertimento dos que murmuraram de Moisés e Arom, |
Arom, Aarão |
e a destruição de Jerusalém, |
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por serem milagrosos e procederem por nova promissão divina, |
promissão, promessa |
e porque nenhuma cousa há aí debaixo do sol sem tornar a ser o que foi, |
(pela semente) |
e o que viram desta qualidade de tremor havia de tornar a ser por força, |
(?assim a necessidade) |
ou cedo ou tarde não o escreveram. |
ou cedo ou tarde não, |
Concluo que não foi este nosso espantoso tremor, |
ira Dei, ira de Deus |
mas ainda quero que me queimem se não fizer certo que tão evidente foi e manifesta a piedade do senhor Deus neste caso como a fúria dos elementos e dano dos edifícios. |
fizer certo, (ser) for certo(o melhor e o pior - supremo bem e maior catástrofe) |
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E respondendo à segunda proposição contra aqueles que diziam que logo viria outro tremor, e que o mar se levantaria a vinte cinco de Fevereiro: |
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Digo que tanto que Deus fez o homem mandou deitar um pregão no paraíso terreal: |
[ 1 - Lei Natural ] |
que nenhum Serafim, |
deitar um pregão, informar, |
nem Anjo, |
divulgar uma lei, ou ordenação. |
nem homem, |
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nem santo, |
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nem santificado no ventre de sua mãe, |
por vir, por suceder no futuro |
E depois no tempo de Moisés mandou deitar outro pregão: |
[ 2 - Lei de Escritura ] |
que a nenhum adevinhadeiro, |
adivinhador, adivinho,dessem vida, ?crédito |
e depois de feito Deus e homem, |
[ 3 - Lei da Graça ] |
deitou outro pregão sobre o mesmo caso, |
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não convém a vós outros saber o que está por vir, |
(portanto:) ...Não pela Religião... Pois nem pela Razão nem pela Fé. |
pelo qual mui maravilhado estou dos letrados mostrarem-se tão bravos contra tão hórridos pregões e defesas do Senhor, |
A - Não pela Razão (saber) [irónico-1] pelo qual? letrados,(aqui, os clérigos) hórridos, ásperos |
sendo certo que nunca cousa destas disseram, |
ficassem mais por mentirosos que por profetas |
e não menos me maravilho daqueles que crêem [ daqueles que crem — dos crentes — daqueles que acreditam em Deus, que têm fé] que nenhum homem pode saber aquilo que não tem ser senão no segredo da eternal sabedoria, |
B ... Pois nem pela Fé[irónico-2] e não menos? daqueles que crem, dos crentes [o Autor exclui-se deste grupo] |
que o tremor da terra ninguém sabe como é, |
como é , o que é e como? camanho, quão grande |
se dizem que por estrolomia que é ciência o sabem, |
C - Não pela Ciência |
[ - ] não digo eu os de agora que a não sabem soletrar, [ - ] |
estrolomia, astronomia(estrolosia, astrologia) |
mas é em si tão profundíssima, |
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nem Mousem nem Joanes de Monterégio alcançaram da verdadeira judicatura peso de um oução, |
judicatura, causa (ajuizada) oução, ácaro (minúsculo) |
e se dizem que por mágica, |
D - Nem por Magia |
e toda a substância sua consiste em aparências de cousas presentes, |
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se por espírito profético já crucificaram o profeta derradeiro, |
E - Nem por ProfeciaNão há de haver mais profetas depois de Cristo. |
Concluo virtuosos padres sob vossa emenda, |
sob vossa emenda, |
que não é de prudência dizerem-se tais cousas publicamente, |
(porque) ? |
nem menos serviço de Deus, |
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porque pregar não há de ser praguejar, |
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as vilas e cidades dos Reinos de Portugal principalmente Lisboa, |
praguejar, rogar pragas a (praguejar as vilas e...) |
se aí há muitos pecados, |
(pois) ? se ? |
há infindas esmolas e romarias, |
há (também) ? |
muitas missas e orações, |
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e procissões, |
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e infindas obras pias, |
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e se alguns aí há que são ainda estrangeiros na nossa fé, |
e se ? e se ? (então) ? |
devemos imaginar, |
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que se faz por ventura com tão santo zelo, |
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e parece mais justa virtude aos servos de Deus e seus pregadores, |
(finaliza - aconselhando) ? |
e confessá-los, |
provocá-los, estimulá-los |
que escandalizá-los e corrê-los por contentar a desvairada opinião do vulgo. |
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E porque tudo me louvaram e concederam ser muito bem apontado o mandei a Vossa Alteza por escrito, até lhe Deus dar tanto descanso e contentamento, como em todos seus reinos é desejado, para que por minha arte lhe diga o que aqui falece, e porém saberá Vossa Alteza que este auto foi de tanto seu serviço, que nunca cuidei que se oferecesse caso em que tão bem empregasse o desejo que tenho de o servir, assim vizinho da morte como estou: porque à primeira pregação os Cristãos novos desapareceram, e andavam morrendo de temor da gente, e eu fiz esta diligência, e logo ao sábado seguinte seguiram todos os pregadores esta minha tenção. |
apontado, dirigidofalece, expira, extingue, termina, acaba, morre... porém, por isso ...eu este auto, esta acção fiz esta diligência, executei este serviço |