Auto dos Almocreves

Gil Vicente

Esta seguinte farsa foi feita e representada ao muito poderoso e excelente rei dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua cidade de Coimbra, na era do Senhor de 1526.

Seu fundamento é que um Fidalgo de muito pouca renda usava muito estado, tinha Capelão seu e Ourives seu e outros oficiais, aos quais nunca pagava.

E vendo-se o seu Capelão esfarrapado e sem nada de seu, entra dizendo:

Capelão

Pois que nam posso rezar

por me ver tam esquipado

por aqui por este arnado

quero um pouco passear

por espaçar meu cuidado.

5

E grosarei o romance

de Yo me estaba en Coimbra

pois Coimbra assi nos cimbra

que nam há quem preto alcance.

Grosa:

Yo me estaba en Coimbra

10

cidade bem assentada

polos campos de Mondego

nam vi palha nem cevada.

Quando aquilo vi mesquinho

entendi que era cilada

15

contra os cavalos da corte

e minha mula pelada.

Logo tive a mau sinal

tanta milhã apanhada

e a peso de dinheiro

20

ó mula desemparada.

Vi vir ao longo do rio

uma batalha ordenada

nam de gentes mas de mus

com muita raia pisada

25

[ Interrompe o romance, e intercala no seu contexto: ]

A carne está em Bretanha

e as couves em Biscaia.

[ Continua a cantarolar o romance: ]

Sam capelão dum fidalgo

que nam tem renda nem nada

quer ter muitos aparatos

30

e a casa anda esfaimada.

Toma ratinhos por pajens

anda já a cousa danada

quero-lhe pedir licença

pague-me minha soldada.

35

Chega o Capelão a casa do Fidalgo e falando com ele diz:

Capelão

Senhor, já será rezão?

Fidalgo

Avante padre, falai...

Capelão

Digo, que em três anos vai,

que sam vosso capelão…

Fidalgo

É grande verdade, avante…

40

Capelão

Eu fora já do ifante

e pudera ser que de el-rei.

Fidalgo

À bofé padre, não sei!

Capelão

Si senhor, que eu sou de estante...

Ainda que cá me empreguei!

45

Ora, pois veja senhor,

que é o que me há de dar…,

porque além do altar

servia de comprador.

Fidalgo

Não vo-lo hei de negar!

50

Fazei-me uma petição

de tudo o que requereis.

Capelão

Senhor não me perlongueis

que isso não traz concrusão,

nem vejo que a quereis…

55

Porque me fiz polo vosso,

clericus et negoceatores.

Fidalgo

Assi, vos dei eu favores,

e disso, pouco que eu posso,

vos fiz mais que outros senhores.

60

Ora um clérigo, que mais quer

de renda, nem outro bem,

que dar-lhe homem de comer

que é cada dia um vintém

e mais muito a seu prazer.

65

Ora a honra que se monta!

É capelão de foão!...

Capelão

E do vestir, não fazeis conta?

E esse comer, com paixão,

e dormir com tanta afronta

70

que a coroa jaz no chão?

Sem cabeçal e à uma hora,

e missa sempre de caça…,

e por vos cair em graça,

servia-vos também de fora…,

75

até comprar sibas na praça.

E outros carregozinhos,

desonestos pera mi…,

isto senhor é assi…

E azemel nesses caminhos,

80

arre aqui, e arre ali...

E ter carrego dos gatos,

e dos negros da cozinha,

[ … ]

e alimpar-vo-los sapatos...

[ … inha]

E outras cousas que eu fazia!

85

Fidalgo

Assi fiei eu de vós

toda a minha esmolaria

e dáveis polo amor de Deos

sem vos tomar conta um dia.

Capelão

Dos três anos que eu alego

90

dá-la-ei logo sem pendenças

mandastes dar a um cego

um real por Endoenças.

Fidalgo

Eu isso nam vo-lo nego.

Capelão

E logo daí a um ano

95

pera ajuda de casar

uma órfã, mandastes dar

meo côvado de pano

de Alcobaça por tosar.

E nos dous anos primeiros

100

repartistes três pescadas

por todos esses mosteiros

na Pederneira compradas

daquestes mesmos dinheiros.

Ora eu recebi cem reais

105

em três anos contai bem

tenho aqui meo vintém.

Fidalgo

Padre boa conta dais

ponde tudo num itém!

E falai ao meu doutor,

110

que ele me falará nisso.

Capelão

Deixe vossa mercê isso

pera el rei nosso senhor

e vós falai-me de siso.

Que coma senhor me ficastes

115

isto dentro em Santarém

de me pagardes mui bem.

Fidalgo

Em quantas missas me achastes

das vossas digo eu porém?

Capelão

Que culpa vos tem Samora?

120

Por vós estão elas nos céus.

Fidalgo

Mas tomai-as pera vós

e gardai-as muito embora

entam pague-vo-las Deos.

Que eu não gasto meus dinheiros

125

em missas atabalhoadas.

Capelão

E vós fazeis foliadas

e nam pagais o gaiteiro

isso são balcarriadas.

Se vossas mercês nam hão

130

cordel pera tantos nós

vivei vós aquém de vós

e nam compreis gavião

pois que nam tendes piós.

Vós trazeis seis moços de pé

135

e acrecentai-los a capa

coma rei e por mercê

nam tendo as terras do papa

nem os tratos de Guiné.

Antes vossa renda encurta

140

coma pano de Alcobaça.

Fidalgo

Todo o fidalgo da raça

em que a renda seja curta

é per força que isso faça.

Padre mui bem vos entendo

145

foi sempre a vontade minha

dar-vos a el rei ou à rainha.

Capelão

Isso me vai parecendo

bom trigo se der farinha.

Senhor, se me isso fizer,

150

grande mercê me fará!

Fidalgo

Eu vos direi que será...

Dizei ora um profácio a ver

que voz tendes pera lá.

Capelão

Folgarei de o dizer

155

mas quem me responderá?

Fidalgo

Eu.

Capelão

Penonia secula seculorum.

Fidalgo

Amen!

Capelão

Dominus vobiscum.

Fidalgo

Avante.

Capelão

Sursum corda.

160

Fidalgo

Tendes essa voz tam gorda

que pareceis alifante

depois de farto de açorda.

Capelão

Pior voz, tem Simão Vaz,

tesoureiro e capelão...,

165

e pior o adaião

que canta como alcatraz...,

e outros, que per i estão.

Quereis que acabe a cantiga

e vereis aonde vou ter?

170

Fidalgo

Padre eu hei de ter fadiga

mas del rei haveis de ser

escusada é mais briga.

Capelão

Sabeis em que está a contenda

direis: é meu capelão!

175

E el-rei sabe a vossa renda,

e rir-se-á se vem à mão,

e remeter-me-á à fazenda.

Fidalgo

Se vós fôreis entoado.

Capelão

Que bem posso eu cantar

180

onde dão sempre pescado

e de dous anos salgado

o pior que há no mar.

Vem um Pajem do Fidalgo e diz:

Pajem

Senhor o Ourives sé ali.

Fidalgo

Entre... Quererá dinheiro...

185

Venhais embora cavaleiro,

cobri a cabeça, cobri...,

tendes grande amigo em mi...,

e mais, vosso pregoeiro!

Gabei-vos ontem a el-rei

190

quanto se pode gabar

e sei que vos há de acupar

e eu vos ajudarei

cada vez que me i achar.

Porque às vezes estas ajudas

195

são milhores que cristéis

porque só a fama que haveis

e outras cousas meúdas

o que valem já o sabeis.

Ourives

Senhor eu o servirei

200

e nam quero outro senhor.

Fidalgo

Sabeis que tendes milhor?

Eu o dixe logo a el rei

e faz em vosso louvor.

Nam vos dá mais que vos paguem

205

que vos deixem de pagar

nunca vi tal esperar

nunca vi tal avantagem

nem tal modo de agradar.

Ourives

Nossa conta é tam pequena

210

e há tanto que é devida

que morre de prometida

e peço-a já com tanta pena

que depeno a minha vida.

Fidalgo

Ora olhai esse falar

215

como vai bem martelado

folgo nam vos ter pagado

por vos ouvir martelar

marteladas de avisado.

Ourives

Senhor beijo-vo-las mãos

220

mas o meu queria eu na mão.

Fidalgo

Também isso é cortesão:

senhor beijo-vo-las mãos

o meu queria eu na mão

Que bastiães tam louçãos!...

225

Quanto pesava o saleiro?

Ourives

Dous marcos bem ouro e fio.

Fidalgo

Essa é a prata, e o feitio?

Ourives

Assaz de pouco dinheiro.

Fidalgo

Que val com feitio e prata?

230

Ourives

Justos nove mil reais

e nam posso esperar mais

que o vosso esperar me mata.

Fidalgo

Rijamente me apertais.

E fazeis-me mentiroso

235

que eu gabei-vos doutro jeito

e se eu tornar ao desfeito

nam será proveito vosso.

Ourives

Assi que o meu saleiro peito?

Fidalgo

Ele é dos mais maus saleiros

240

que eu em minha vida comprei.

Ourives

Ainda o eu tomarei

a cabo de três Janeiros

que há que vo-lo eu fiei.

Fidalgo

Já agora nam é rezão

245

eu nam quero que vós percais.

Ourives

Pois por que me nam pagais

que eu mesmo comprei o carvão

com que me encarvoiçais?

Fidalgo

Moço vai-me ver que faz el-rei

250

se parecem damas lá

este dia nam se vá

em pagarás nam pagarei

e vós tornai outro dia cá.

Se nam achardes a mi

255

falai com o meu camareiro

porque ele tem o dinheiro

que cada ano vem aqui

da renda do meu celeiro.

E dele receberês

260

o mais certo pagamento.

Ourives

E pagais-me aí c'o vento

ou co as outras mercês?

Fidalgo

Tomai-lhe vós lá o tento.

Indo-se, o Ourives vai dizendo:

Ourives

Estes hão de ir ao paraíso…

265

Nam creo eu logo nele

eu lhes mudarei a pele.

Daqui avante siso, siso,

juro a Deos que eu me abroquele.

Vem o Pajem com recado e diz:

Pajem

Senhor in rei sé no Paço.

270

Fidalgo

Em que casa?

Pajem

Isto abasta.

Fidalgo

O recado que ele dá!

Ratinho és de má casta...

Pajem

Abonda! Bem sei eu o que eu faço.

Fidalgo

Abonda... Olhai o vilão!

275

Damas parecem per i?

Pajem

Si senhor, damas vi...,

andavam pelo balcão.

[ … i]

Fidalgo

E quem eram?

Pajem

Damas mesmas.

Fidalgo

Como as chamam?

280

Pajem

Nam as chamava ninguém.

Fidalgo

Ratinhos são abantesmas,

e quem por pajens os tem.

Eu hei de fazer por haver

um pajem de boa casta.

285

Pajem

Ainda eu hei de crecer

castiço sam eu que basta

se me Deos deixar viver...

Pois o mais deprenderei...,

como outros como eu, per i ...

290

Fidalgo

Pois faze-o tu assi

porque hás de ser del rei....

Moço da câmara ainda!

Pajem

Boa foi logo cá vinda...

Assi que até os pastores

295

hão de ser del rei samica

por isso esta terra é rica

de pão: porque os lavradores

fazem os filhos paçãos.

Cedo nam há de haver vilãos

300

todos del rei todos del rei.

Fidalgo

E tu zombas?

Pajem

Nam mas antes sei

que também alguns cristãos

hão de deixar a costura.

Torna o Capelão:

Capelão

Vossa mercê per ventura

305

falou já a el rei em mi?

Fidalgo

Ainda jeito nam vi.

Capelão

Nam seja tam longa a cura

como o tempo que servi.

Fidalgo

Anda el rei tam acupado

310

co este turco co este papa

co esta França co esta trapa

que nam acho vau azado

porque tudo anda solapa.

Eu entro sempre ao vestir

315

porém pera arrecadar

há mister grande vagar

podeis-me em tanto servir

até que eu veja lugar.

Capelão

Senhor, queria concrusão?

320

Fidalgo

Concrusão quereis. Bem, bem...

Concrusão há em alguém?

Capelão

Concrusão quer concrusão

e nam há concrusão em nada!

Senhor eu tenho gastada

325

uma capa e um mantão

pagai-me minha soldada...

Fidalgo

Se vós pudésseis achar

a altura de leste a oeste

pois nam tendes voz que preste

330

per equi era o medrar...

Capelão

E vós pagais-me co ar!?

Mau caminho vejo eu este!

Vai-se.

Pajem

Deve-o el rei de tomar

que luta coma danado

335

ele é do nosso lugar

de moço guardava gado

agora veo a bispar.

Mas nam sinto capelão

que lhe chante um par de quedas

340

e chama-se o labaredas.

Fidalgo

E cá chama-se cotão

mais fidalgo que os Azedas.

Satisfação me pedia

que é pior de fazer

345

que queimar toda Turquia

porque do satisfazer

naceu a melanconia.

Vem Pero Vaz, almocreve que traz um pouco de fato do Fidalgo, e vem tangendo a chocalhada e cantando:

Pero Vaz

Cantando:

A serra é alta fria e nevosa

vi venir serrana gentil graciosa.

350

Falando:

Arre mulo namorado!

Que custaste no mercado

sete mil e novecentos

e um traque pera o siseiro...

Apre ruço acrecentado

355

a moradia de quinhentos

paga per Nuno Ribeiro.

Dix pera a paga e pera ti…

Arre arre arre embora,

que já as tardes são de amigo…

360

Apre besta do roim!

Uxtix o atafal vai por fora

e a cilha no embigo…

São diabos pera os ratos

estes vinhos da Candosa.

365

Canta:

A serra é alta fria e nevosa

vi venir serrana gentil graciosa.

Fala:

Apre cá ieramá…,

que te vás todo torcendo

como jogador de bola...,

370

uxtix uxte xulo cá,

que te eu dou, irás gemendo

e ressoprando sob a cola.

Ah corpo de mi Tareja

descobris-vos vós na cama

375

[ … ?]

[ … ?]

.parece dix pera vossa ama

.nam criarás tu i bareja.

Canta:

Vi venir serrana gentil graciosa

cheguei-me pera ela com grã cortesia.

Fala:

Mando-vos eu sospirar

380

pola padeira de Aveiro

que haveis de chegar à venda

e entam ali desalbardar

e albardar o vendeiro

senam tever que nos venda...

385

Vinho a seis, cabra a três

pão de calo, filhós de manteiga

moça fermosa, lençóis de veludo…

Casa juncada, noite longa

chuva com pedra, telhado novo

390

a candea morta e a gaita à porta.

Apre zambro empeçarás

olha tu nam te ponha eu

o colos na rabadilha

e verás por onde vás

395

demo que te eu dou por seu

e andarás lá de cilha.

Canta:

Cheguei-me a ela de grã cortesia

disse-lhe: senhora quereis companhia?

Vem Vasco Afonso, outro almocreve, e topam-se ambos no caminho, e diz Pero Vaz:

Pero Vaz

Ou Vasco Afonso onde vás?

400

Vasco Afonso

Uxtix per esse chão.

Pero Vaz

Nam traes chocalhos nem nada.

Vasco Afonso

Furtaram-mos lá detrás

um fi de puta ladrão

na venda da repeidada.

405

Pero Vaz

I bebemos nós à vinda.

Vasco Afonso

Cujo é o fato Pero Vaz?

Pero Vaz

Dum fidalgo, dou ò diabo

o fato e seu dono co ele.

Vasco Afonso

Valente almofreixe traz.

410

Pero Vaz

Toma o mu de cabo a rabo.

Vasco Afonso

Pardeos carrega leva ele.

Pero Vaz

Uxtix agora nam pacerão eles

e lá por essas charnecas

vem roendo as urzeiras.

415

Vasco Afonso

Leixa-òs tu Pero Vaz que eles

acham aqui as ervas secas

e nam comem giesteiras.

E quanto te dão por besta?

Pero Vaz

Nam sei assi Deos me ajude.

420

Vasco Afonso

Nam fizeste logo o preço

mal hás tu de livrar desta.

Pero Vaz

Leixei-o em sua virtude

no que ele vir que eu mereço.

Vasco Afonso

Em sua virtude o deixaste

425

e trá-la ele consigo

ou há de ir buscá-la ainda?

Oh que aramá te fartaste

queres apostar comigo

que tu renegues da vinda?

430

Pero Vaz

Ele pôs desta maneira

a mão na barba e me jurou

de meus dinheiros pagá-los.

Vasco Afonso

Essa barba era inteira

a mesma em que te jurou

435

ou bigodezinhos ralos?

Pero Vaz

Ora Deos sabe o que faz

e o juiz de Samora.

De fidalgo é manter fé.

Vasco Afonso

Bem sabes tu Pero Vaz

440

que fidalgo há já agora

que nam sabe se o é.

Como vai a ta molher

e todo teu gasalhado?

Pero Vaz

O gasalhado i ficou...

445

Vasco Afonso

E a molher?

Pero Vaz

Fogiu.

Vasco Afonso

Nam pode ser!

Como estarás magoado,

ieramá!

Pero Vaz

Bofá, nam estou.

Uxtix sempre hás de andar

debaixo dos sovereiros.

450

E a mi que me dá disso?

Vasco Afonso

Per força te há de pesar

se rirem de ti os vendeiros.

Pero Vaz

Nam tenho de ver co isso.

Vai Vasco

Afonso ao teu mu

455

que se quer deitar no chão.

Vasco Afonso

Pesa-te mas dessingulas.

Pero Vaz

Nam pesa. Bem sabes tu

que as molheres nam são

todo o Verão senam pulgas.

460

Isto é quanto à saudade

que eu dela posso ter

e quanto ao rir das gentes

ela fez sua vontade

foi-se per i a perder

465

e eu nam perdi os dentes.

Ainda aqui estou enteiro

Vasco Afonso como dantes

filho de Afonso Vaz

e neto de Jam Diz pedreiro

470

e de Branca Anes de Abrantes

nam me faz nem me desfaz.

Do que me fica gram nó

que teve rezão de se ir

e em parte nam é culpada

475

porque ela dormia só

e eu sempre ia dormir

c'os meus mus à meijoada.

Queria-a eu ir poupando

pera lá pera a velhice

480

como colcha de Medina

e ela mosca Fernando

quando viu minha pequice

foi descobrir outra mina.

Vasco Afonso

E agora que farás?

485

Pero Vaz

Irei dormir à Cornaga

e amenhã à Cucanha

e tu vai, embora vás

que eu vou servir esta praga

e veremos que se ganha.

490

Vai cantando:

Disse-lhe: senhora quereis companhia?

Dixe-me: escudeiro segui vossa via.

Pajem

Senhor o almocreve é aquele

que os chocalhos ouço eu

este é o fato senhor.

495

Fidalgo

Ponde todos cobro nele.

Pero Vaz

Uxtix mulo do judeu!...

O fato u se há de pôr?

Pajem

Venhais embora Pero Vaz.

Pero Vaz

Mantenha Deos vossa mercê.

500

Pajem

Viestes polas Folgosas?

Pero Vaz

Aí estive eu hoje faz

oito dias pé por pé

em casa de uas tias vossas.

Pajem

Ora meu pai que fazia?

505

Pero Vaz

Cavava andand'ò bacelo

bem cansado e bem suado.

Pajem

E minha mãe?

Pero Vaz

Levava o gado

lá pera Val de Cubelo

mal roupada que ela ia.

510

Uxtix que mau lambaz

e vossa mercê que faz?

Pajem

Estou loução coma quê.

Pero Vaz

E a bofé creceis assaz

[ …az ]

saúde que vos Deos dê.

515

Pajem

Eu sou pajem de meu senhor

se Deos quiser pajem da lança.

Pero Vaz

E um fidalgo tanto alcança?

Isso é de emperador

[ …ança]

ora prenda el rei de França.

520

Pajem

Ainda eu hei de perchegar

a cavaleiro fidalgo.

Pero Vaz

Pardeos João Crespo Penalvo

que isso seria esperar

de mau rafeiro ser galgo.

525

[ …alvo]

Mais fermoso está ao vilão

mau burel que bom frisado

e romper matos maninhos

e ao fidalgo de nação

ter quatro homens de recado

530

e leixar lavrar ratinhos

Que em Frandes e Alemanha

em toda França e Veneza

[ …erra]

que vivem per siso e manha

por nam viver em tristeza.

535

Nam é como nesta terra!

Porque o filho do lavrador

casa lá com lavradora

e nunca sobem mais nada

e o filho do broslador

540

casa com a brosladora

isto per lei ordenada.

E os fidalgos de casta

servem os reis e altos senhores

de tudo sem presunção

545

tam chãos que pouco lhes basta

e os filhos dos lavradores

pera todos lavram pão.

Pajem

Quero ir dizer de vós.

Pero Vaz

Ora ide dizer de mi

550

que se grave é Deos dos céus

[ …ós]

mais graves deoses há aqui.

[ …éus ]

Pajem

Senhor ali vem o fato

e está à porta o almocreve

vede quem lhe há de pagar

555

isso tal que se lhe deve.

Fidalgo

Isto é com que me eu mato

quem te manda procurar.

Atenta tu polo meu

e arrecada-o muito bem

560

e nam cures de ninguém.

Pajem

Ele é de a par de Viseu

e homem que me pertém

pois a porta lhe abri eu.

Entra dentro o Almocreve e diz:

Pero Vaz

Senhor trouxe a frascaria

565

de vossa mercê aqui

i estão os mus albardados.

Fidalgo

Essa é a mais nova aravia

de almocreve que eu vi

dou-te vinte mil cruzados.

570

Pero Vaz

Mas pague-me vossa mercê

o meu aluguer nô mais

que me quero logo ir.

Fidalgo

O aluguer quanto é?

Pero Vaz

Mil e seiscentos reais

575

e isto por vos servir.

Fidalgo

Falai c'o meu azemel

porque é doutor das bestas

e estrólogo dos mus

que assente em um papel

580

per avaliações honestas

o que se monta. Ora sus.

Porque esta é a ordenança

e estilo de minha casa

e se o azemel for fora

585

como cuido que é em França

dareis outra volta à massa

e ir-vos-eis por agora.

Vossa paga é nas mãos.

Pero Vaz

Já a eu quisera nos pés

590

oh pesar de minha mãe.

Fidalgo

E tens tu pai e irmãos?

Pero Vaz

Pagai senhor nam zombeis

que sam dalém da Sertãe

e nam posso cá tornar.

595

Fidalgo

Se cá vieres à corte

pousarás aqui c'os meus.

Pero Vaz

Nunca mais hei de fiar

em fidalgo desta sorte

inda que o mande sam Mateus.

600

Fidalgo

Faze por teres amigos

e mais tal homem como eu

porque dinheiro é um vento.

Pero Vaz

Dou eu já ò demo os amigos

que me a mi levam o meu.

605

[ … ento]

Vai-se o Almocreve e vem outro Fidalgo, e diz o Fidalgo primeiro:

Fidalgo

Oh que grande saber vir

e gram saber-m'à vontade.

Fidalgo II

Pois senhor que vos parece

desejo de vos servir

e nam quero que venha à cidade

610

um quem nam parece esquece.

Fidalgo

Paguei soma de dinheiro

a um ourives agora

de prata que me lavrou

e paguei a um recoveiro

615

que é a dar dinheiros fora

a quem nam sei como os ganhou.

Fidalgo II

Ganham-nos tam mal ganhados

que vos roubam as orelhas.

Fidalgo

Pola hóstia consagrada

620

e polo Deos consagrado

que os lobos nas ovelhas

nam dão tam crua pancada.

Polos santos avangelhos

e polo omnium sanctorum

625

que até o meu capelão

por mezinhas de coelhos

e uma secula seculorum

lhe dou por missa um tostão.

Nam há já homem em Portugal

630

tam sojeito em pagar

nem tam forro pera molheres.

Fidalgo II

Guardai vós esse bem tal

que a mi hão-me de matar

bem me queres mal me queres.

635

Fidalgo

Por quantas damas Deos tem

nam daria nemigalha

olhai que descubro isto.

Fidalgo II

Sam tam fino em querer bem

que de fino tomo a palha

640

pola fé de Jesu Cristo.

Quem quereis que veja olhinhos

que se nam perca por eles

lá per uns jeitinhos lindos

que vos metem em caminhos

645

e nam há caminhos neles

senam espinhos enfindos.

Fidalgo

Eu já nam hei de penar

por amores de ninguém

mas dama de bom morgado

650

aqui vai o remirar

aqui vai o querer bem

e tudo bem empregado.

Que porque dance mui bem

nem bailar com muita graça

655

seja discreta avisada

fermosa quanto Deos tem

senhor boa prol lhe faça

se seu pai nam tiver nada.

Fidalgo II

Nam sejais vós tam Mancias

660

que isso passa já de amor

e cousas desesperadas

porém lá por vossas vias

vou-vos esperar senhor

a rendeiro das jugadas.

665

Porque galante caseiro

é pera pôr em história.

Fidalgo

Mas zombai senhor zombai.

Fidalgo II

Senhor o homem enteiro

nam lhe há de vir à memória

670

co a dama o de seu pai.

Nem há mais de desejar

nem querer outra alegria

que So los tus cabellos niña…

Nam há i mais que esperar.

675

[ …ia]

onde é esta canteguinha.

E Todo mal é de quem no tem

e Se o disserem digam alma minha

Quem vos anojou meu bem…

Hei-os todos de grosar…

680

Ainda que sejam velhos!

Fidalgo

Vós senhor vindes tam bravo

que eu hei-vos medo já

polos santos avangelhos

que levais tudo ao cabo

685

lá onde cabo nam há.

Fidalgo II

Zombais e dais a entender

zombando que me entendeis

pois de vós mui alto estou

porque deveis de saber

690

que se de amor nam sabeis

nam podeis ir onde vou.

Quando fordes namorado

vireis a ser mais profundo

mais discreto e mais sotil

695

porque o mundo namorado

é lá senhor outro mundo

que está além do Brasil.

Ó meu mundo verdadeiro

ó minha justa batalha

700

mundo do meu doce engano.

Fidalgo

Ó palha do meu palheiro

que tenho um mundo de palha

palha ainda de ora a um ano.

E tenho um mundo de trigo

705

pera vender essa gente

bom cabeça tem Morale

nam quero de amor amigo

andar gemente e flente

in hac lachrymarum vale.

710

Fidalgo II

Vou-me. Vós não sois sentido

sois mui duro do pescoço

nam val isso nemigalha

pesa-me de ver perdido

um homem fidalgo ensosso

715

pois tem a vida na palha.

Finis.