Auto do Velho da Horta

Gil Vicente

1512

Esta seguinte farsa, é o seu argumento, que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta. E andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma Moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o Velho em tanta maneira se namorou dela que por via de uma Alcoviteira gastou toda sua fazenda. A Alcoviteira foi açoutada, e a Moça casou honradamente.

Entra logo o Velho rezando pela horta.

Foi representada ao mui sereníssimo rei dom Manuel, o primeiro deste nome.

Era do Senhor de 1512.

*

[ Prólogo ]

1

1e

Velho

Pater noster criador

qui es in celis poderoso

sanctificetur senhor

nomen tuum vencedor

nos céus e terra piedoso.

5

2e

Adveniat a tua graça

regnum tuum sem mais guerra

[ …aça]

voluntas tua se faça

sicut in celo e in terra.

2

3e

Panem nostrum que comemos

10

cotidianum teu é

escusá-lo não podemos

inda que o não merecemos

tu da nobis hodie.

4e

Dimitte nobis senhor

15

debita nossos errores

sicut et nos por teu amor

dimittimus qualquer error

aos nossos devedores.

3

5e

Et ne nos Deos te pedimos

20

inducas per nenhum modo

in tentationem caímos

porque fracos nos sentimos

formados de triste lodo.

6e

Sed libera nossa fraqueza

25

nos a malo nesta vida

amen por tua grandeza

e nos livre tua alteza

da tristeza sem medida.

*

[ I Acto ]

Entra a Moça na horta e diz o Velho:

4

7e

Velho

Senhora benza-vos Deos.

30

Moça

Deos vos mantenha senhor.

Velho

Onde se criou tal flor,

eu diria que nos céus!?

8e

Moça

Mas no chão!

Velho

Pois damas se acharão

35

que não são vosso sapato.

Moça

Ai como isso é tão vão!

E como as lisonjas são

de barato.

5

9e

Velho

Que buscais vós cá donzela,

40

senhora, meu coração?

Moça

Vinha ao vosso hortelão

por cheiros para a panela.

10e

Velho

E a isso

vindes vós, meu paraíso,

45

minha senhora, e não al?

Moça

Vistes vós, segundo isso,

nenhum velho não tem siso

natural.

6

11e

Velho

Ó meus olhinhos garridos,

50

minha rosa, meu arminho.

Moça

Onde é o vosso ratinho?

Não tem os cheiros colhidos?

12e

Velho

Tão de pressa

vindes vós, minha condessa?

55

Meu amor, meu coração.

Moça

Jesu! Jesu, que cousa é essa?

E que prática tão avessa

da razão!

7

13e

Falai, falai doutra maneira!...

60

Mandai-me dar a hortaliça.

Velho

Grã fogo de amor me atiça…

Ó minha alma verdadeira.

14e

Moça

E essa tosse?

Amores de sobreposse

65

serão os da vossa idade!...

O tempo vos tirou a posse.

Velho

Mais amo, que se moço fosse

com a metade.

8

15e

Moça

E qual será a desastrada

70

que atente em vosso amor?

Velho

Ó minha alma e minha dor,

quem vos tivesse furtada.

16e

Moça

Que prazer!

Quem vos isso ouvir dizer

75

cuidará que estais vós vivo…,

ou que sois para viver.

Velho

Vivo, não no quero ser,

mas cativo!

9

17e

Moça

Vossa alma não é lembrada

80

que vos despede esta vida?

Velho

Vós sois minha despedida,

minha morte antecipada.

18e

Moça

Que galante!...

Que rosa, que diamante,

85

que preciosa perla fina.

Velho

Oh fortuna triunfante!

Quem meteu um velho amante

com menina?

10

19e

O maior risco da vida,

90

e mais perigoso é amar…,

que morrer, é acabar,

e amor, não tem saída.

20e

E pois, penado

ainda que seja amado,

95

vive qualquer amador…

Que fará o desamado

e sendo desesperado

de favor?

11

21e

Moça

Ora, dá-lhe lá favores!

100

Velhice, como te enganas.

Velho

Essas palavras oufanas

acendem mais os amores.

22e

[ …uras]

Moça

Bô homem, estais às escuras,

Não vos vedes como estais!?

105

Velho

Vós me cegais com tristuras,

mas vejo as desaventuras

que me dais.

12

23e

Moça

Não vedes que sois já morto

e andais contra natura?

110

Velho

Ó flor da mor formosura,

quem vos trouxe este meu horto?

24e

Ai de mi!

Porque assim como vos vi

cegou minha alma e a vida...,

115

e está tão fora de si,

que em partindo-vos daqui

é partida.

13

25e

Moça

Já perto sois de morrer…

Donde nasce esta sandice,

120

que – quanto mais na velhice –

amais os velhos viver?

26e

E mais querida

– quando estais mais da partida –

é a vida que deixais!?

125

Velho

Tanto sois mais homicida!

Que quando amo mais a vida,

ma tirais.

14

27e

Porque a minha hora de agora

val vinte anos dos passados…,

130

que os moços namorados

a mocidade os escora.

28e

Mas um velho

em idade de conselho,

de menina namorado…

135

Ó minha alma e meu espelho!

Moça

Ó miolo de coelho…,

mal assado!

15

29e

Velho

Quanto for mais avisado

quem de amor vive penando,

140

terá menos siso amando,

porque é mais namorado.

30e

Em conclusão:

que amor não quer razão,

nem contrato, nem cautela,

145

nem preito, nem condição,

mas penar de coração

sem querela.

16

31e

Moça

U-los esses namorados?

Desinçada é a terra deles!

150

Olho mau se meteu neles,

namorados de cruzados…

32e

Isso si!

Velho

Senhora, eis-me eu aqui,

que não sei senão amar…

155

Ó meu rosto de alfeni,

que em forte ponto vos vi

neste pomar.

17

33e

Moça

Que velho tão sem sossego!

Velho

Que garredice me vistes?

160

Moça

Mas, dizei, que me sentistes?

Remelado!... Meio cego!!!

34e

Velho

Mas, de todo…

Por mui namorado modo

me tendes, minha senhora,

165

já cego, de todo em todo...

Moça

Bem está, quando tal lodo

se namora!

18

35e

Velho

Quanto mais estais avessa

mais certo vos quero bem.

170

Moça

O vosso hortelão não vem!?

Quero me ir, que estou de pressa!

36e

Velho

Ó formosa!

Toda minha horta é vossa.

Moça

Não quero tanta franqueza!

175

Velho

Não por me serdes piedosa,

porque quanto mais graciosa

sois crueza.

19

37e

Cortai tudo sem partido!

Senhora, se sois servida,

180

seja a horta destruída,

pois seu dono é destruído.

38e

Moça

Mana minha!

Achastes vós a daninha!?...

Porque não posso esperar

185

colherei alguma coisinha,

somente por ir asinha

e não tardar.

20

39e

Velho

Colhei rosa, dessas rosas,

minhas flores, colhei flores…

190

Quisera que esses amores

foram perlas preciosas.

40e

E de rubis

o caminho por onde is,

e a horta, de ouro tal

195

com lavores mui subtis,

pois que Deos fazer-vos quis

angelical.

21

41e

Ditoso é o jardim

que está em vosso poder!

200

Podeis, senhora, fazer

dele o que fazeis de mi.

42e

Moça

Que folgura!...

Que pomar e que verdura,

que fonte tão esmerada!

205

Velho

Na água, olhai vossa figura,

vereis minha sepultura

ser chegada.

Canta a Moça:

22

43e

Moça

Cuál es la niña

que coge las flores?…

210

Si no tiene amores…

44e

Cogía la niña

la rosa florida…

El hortelanito

prendas le pedía…

215

Si no tiene amores...

Assim cantando, colheu a Moça da horta o que vinha buscar, e acabado diz:

23

45e

Moça

Eis aqui o que colhi.

Vede! Que vos hei de dar?

Velho

Que me haveis vós de pagar!?

Pois, que me levais a mi…

220

46e

Oh coitado!

Que amor me tem entregado

e em vosso poder me fino…

Porque sou de vós tratado

como a pássaro, em mão dado

225

de um menino.

24

47e

Moça

Senhor, com vossa mercê!?

Velho

Por eu não ficar sem a vossa,

queria de vós uma rosa.

Moça

Uma rosa! Para quê?

230

48e

Velho

Porque são

colhidas de vossa mão!

Deixar-me-eis alguma vida,

não isenta de paixão,

mas será consolação

235

na partida.

25

49e

Moça

Isso é por me deter!?

Ora tomai! Acabar…

Tomou-lhe a mão.

Jesu! E quereis brincar?

Que galante! E que prazer...

240

50e

Velho

Já me deixais?

Lembre-vos que me lembrais

e que não fico comigo…

[...momentos após a saída da Moça]

Ó marteiros infernais! ...

Não sei por que me matais,

245

nem o que digo.

Vem um Parvo, criado do Velho, e diz:

26

51e

Parvo

Dono, dizia minha dona:

Que fazeis vós cá até à noite?

Velho

Vai-te daí, não te açoite!

Oh dou ò decho a chaçona…

250

52e

Sem saber!...

Parvo

Diz que fôsseis vós comer

e que não moreis aqui.

Velho

Não quero comer nem beber!

Parvo

Pois que haveis cá de fazer?

255

Velho

Vai-te di!...

27

53e

Parvo

Dono, veio lá meu tio

estava minha dona, então ela

foi-se-lhe o lume pela panela…

Se não acertá-lo acario?

260

54e

Velho

Ó senhora,

como sei que estais agora

sem saber minha saudade…

Ó senhora matadora,

meu coração vos adora

265

de vontade.

28

55e

Parvo

Raivou tanto rosmear…

Oh pesar ora da vida,

está a panela cozida…

Minha dona quer jentar!

270

56e

Não quereis?

Velho

Não hei de comer, que me pes,

nem quero comer bocado!

Parvo

E se vós, dono, morreis!?

Então despois não falareis

275

senão finado.

29

57e

Então, na terra, nego jazer…

Então finar, dono, estendido!

Velho

Oh quem não fora nascido

ou acabasse de viver.

280

60e

Parvo

Assim, pardeos!

Então, tanta pulga em vós,

tanta bichoca nos olhos...

Ali! C' os finados, sós…

E comer-vos-ão a vós

285

os piolhos!

30

61e

Comer-vos-ão as cigarras

e os sapos… Morrê, morrê!

Velho

Deos me faria mercê

de me soltar as amarras!

290

62e

Vai saltando!

Aqui te fico esperando,

traze a viola e veremos!

Parvo

Ah corpo de São Fernando!

Estão os outros jentando

295

e cantaremos!

[...sai o Parvo para ir buscar a viola.]

31

63e

Velho

Quem fosse do teu teor,

por não sentir tanta praga,

de fogo, que não se apaga

nem abranda tanta dor…

300

[Após uma pausa, volta o Parvo com a viola.]

64e

Hei de morrer!?

Parvo

Minha dona quer comer,

vinde eramá dono, que brada!

Olhai, eu fui-lhe dizer

dessa rosa e do tanger…,

305

e está raivada!...

32

65e

Velho

Vai-te tu, filho Joane!

E dize que logo vou,

que não há tanto que cá estou!

Parvo

Ireis vós para o Sanhoane?

310

66e

Pelo céu sagrado,

que meu dono está danado!

Viu ele o demo no ramo!?

Se ele fosse namorado

logo eu vou [ ao concilado ]

315

buscar outro amo.

315a

Vem a mulher do Velho e diz:

33

67e

Velha

Ui amara do meu fado!

Fernandeanes, que é isto?

Velho

Oh pesar do antecristo

c' a velha destemperada!

68e

Vistes ora!?

320

Velha

Esta dama onde mora!?...

Ui amara dos meus dias!

Vinde jantar, na màora

que vos metedes agora

em musiquias!?

325

34

69e

Velho

Pelo corpo de São Roque!

Comendo ò demo a gulosa...

Velha

Quem vos pôs i essa rosa?

Má forca que vos enforque!

70e

Velho

Não curar!

330

Fareis bem de vos tornar

porque estou mui mal sentido…

Não cureis de me falar,

que não se pode escusar

ser perdido.

335

35

71e

Velha

Agora, c' as ervas novas,

vos tornastes vós granhão!?

Velho

Não sei que é, nem que não,

que hei de vir a fazer trovas!

72e

Velha

Que peçonha!

340

Havei màora vergonha

a cabo de sessenta anos...

Que sondes já carantonha!

Velho

Amores de quem me sonha

tantos danos.

345

36

73e

Velha

Já vós estais em idade

de mudardes os costumes.

Velho

Pois que me pedis ciúmes

eu vo-lo farei, verdade.

74e

Velha

Olhade a peça!

350

Velho

Nunca o demo em al me impeça,

senão morrer de namorado.

Velha

Quer já cair da tripeça

e tem rosa na cabeça,

e embicado!

355

37

75e

Velho

Deixai-me ser namorado,

porque o sou muito, em estremo.

Velha

Mas, que vos tome inda o demo

se vos já não tem tomado!

76e

Velho

Dona torta,

360

acertar por essa porta!...

Velha mal aventurada,

sair màora da horta!

Velha

Ui amara! Aqui sou morta

ou espancada…

365

[Foge a Velha amedrontada]

38

77e

Velho

Estas velhas são pecados…

Santa Maria, val com a praga!

Quanto as, homem mais afaga,

tanto são mais endiabradas!

78e

Canta:

Volvido nos han volvido

370

volvido nos han.

Por una vecina mala

meu amor tolheu-me a fala,

volvido nos han.

*

[ II Acto ]

Vem Branca Gil, Alcoviteira, e diz:

39

79e

Alcoviteira

Mantenha Deos vossa mercê!

375

Velho

Bofe vós venhais embora!

Ah santa Maria, senhora,

como logo Deos provê!

80e

Alcoviteira

Si aosadas!

Eu venho por mesturadas

380

e muito de pressa ainda.

Velho

Mesturadas, mesandadas,

que as fará bem guisadas

vossa vinda.

40

81e

O caso é, sobre meus dias…

385

Em tempo, contra razão,

veio amor sobre tenção

e fez de mi outro Mancias…

82e

Tão penado…,

que de muito namorado,

390

creio que me culpareis

porque tomei tal cuidado,

e do velho testampado

zombareis.

41

83e

Alcoviteira

Mas ante, senhor, agora

395

na velhice anda o amor…

O de idade de amador,

de ventura se namora.

84e

E na corte,

nenhum mancebo de sorte

400

não ama como soía…

Tudo vai em zombaria!

Nunca morrem desta morte

nenhum dia.

42

85e

E folgo, ora, de ver

405

vossa mercê namorado…

Que o homem bem criado,

até morte o há de ser!

86e

Por direito!

Não por modo contrafeito…

410

Mas firme, sem ir atrás!

Que a todo homem perfeito,

mandou Deos no seu preceito:

Amarás!

43

87e

Velho

Isso é o demo que eu brado

415

Branca Gil! E não me val!...

Que não daria um real

por homem desnamorado.

88e

Porém, amiga,

se nesta minha fadiga

420

vós não sois medianeira…,

não sei que maneira siga.

Nem que faça, nem que diga,

nem que queira!

44

89e

Alcoviteira

Ando agora tão ditosa

425

(louvores à virgem Maria!)

que acabo mais do que queria…

Pela minha vida, e vossa!

90e

De antemão

faço uma esconjuração

430

c' um dente de negra morta

ante que entre pola porta

que exorta

qualquer duro coração.

45

91e

Dizede-me, quem é ela?

435

Velho

Vive junto co a Sé.

Alcoviteira

Já, já, já, bem sei quem é...

É bonita como estrela!

92e

[ …il]

uma rosinha de Abril…

Uma frescura de Maio,

440

tão manhosa, tão subtil...

Velho

Acodi-me Branca Gil

que desmaio…

Esmorece o Velho e a Alcoviteira começa a ladainha seguinte:

46

93e

Alcoviteira

Ó precioso santo Arelhano

mártir bem aventurado…

445

Tu que foste marteirado

neste mundo cento e um ano.

94e

Ó são Garcia

Moniz, tu que hoje em dia

fazes milagres dobrados,

450

dá-lhe esforço e alegria,

pois que és da companhia

dos penados.

47

95e

Ó apóstolo são João Fogaça…

Tu que sabes a verdade,

455

pela tua piedade…,

que tanto mal não se faça.

96e

Ó senhor

Tristão da Cunha confessor…

Ó mártere Simão de Sousa…

460

Pelo vosso santo amor

livrai o velho pecador

de tal cousa.

48

97e

Ó santo Martim Afonso

de Melo, tão namorado…

465

Dá remédio este coitado

e eu te direi um responso.

98e

Com devoção!

Eu prometo uma oração

cada dia, quatro meses,

470

por que lhe deis coração

meu senhor são dom João

de Meneses.

49

99e

Ó mártere santo Amador

Gonçalo da Silva, vós,

475

vós que sois um só, dos sós

prefioso em amador.

100e

Apresurado!

Chamai o marterizado

dom Jorge de Eça a conselho…

480

Dois casados, num cuidado

socorrei a este coitado

deste velho.

50

101e

Arcanjo, são comendador

mor de Avis, mui inflamado,

485

que antes que fôsseis nado

fostes santo no amor.

102e

E não fique

o precioso dom Henrique

(outro mor de Santiago),

490

socorrei-lhe muito a pique

antes que o demo repique

com tal pago.

51

103e

Glorioso são dom Martinho,

apóstolo e evangelista,

495

tornai este feito à revista

porque leva mau caminho.

104e

E dai-lhe esprito!

Ò santo barão de Alvito,

Serafim do Deos Cupido,

500

consolai o velho aflito,

porque, inda que contrito,

vai perdido.

52

105e

Todos santos marteirados

socorrei ao marteirado…,

505

que morre de namorado

pois morreis de namorados.

106e

Polo livrar

as virgens quero chamar…

Que lhe queiram socorrer,

510

ajudar e consolar,

que está já para acabar

de morrer.

53

107e

Ó santa dona Maria

Henriques, tão preciosa,

515

queirais-lhe ser piedosa

por vossa santa alegria.

108e

E vossa vista,

que todo o mundo conquista,

esforce seu coração…

520

P'ra que à sua dor resista

por vossa graça, e bem quista

condição.

54

109e

Ó santa dona Joana

de Mendonça, tão formosa,

525

preciosa e mui lustrosa,

mui querida e mui oufana...

110e

Dai-lhe vida

com outra santa escolhida

que tenho in voluntas mea,

530

seja de vós socorrida,

como de Deos foi ouvida

a Cananea.

55

111e

Ó santa dona Joana

Manoel, pois que podeis

535

e sabeis, e mereceis

ser angélica e humana...

112e

Socorrê!...

E vós, senhora, por mercê…

Ó santa dona Maria

540

de Calataud, p'ra que

vossa perfeição lhe dê

alegria...

56

113e

Santa dona Caterina

de Figueiró, a real,

545

por vossa graça especial

que os mais altos inclina…

114e

E ajudará...

Santa dona Beatriz de Sá,

dai-lhe senhora conforto

550

[ … á]

porque está seu corpo já

quase morto.

57

115e

Santa dona Beatriz

da Silva, que sois aquela

mais estrela que donzela,

555

como todo mundo diz…

116e

E vós sentida,

santa dona Margarida

de Sousa, lhe socorrê

se lhe puderdes dar vida,

560

porque está já de partida

sem porquê…

58

117e

Santa dona Violante

de Lima, de grande estima,

mui subida, muito acima

565

de estimar nenhum galante...

118e

Peço-vos eu

e a dona Isabel de Abreu

que hajais dele piedade…

C'o siso que Deos vos deu,

570

que não morra de sandeu

em tal idade.

59

119e

Ó santa dona Maria

de Ataíde, fresca rosa

nascida em hora ditosa…,

575

quando Júpiter se ria...

120e

E se ajudar,

santa dona Ana, sem par…,

de Eça, bem aventurada,

podei-lo ressuscitar…,

580

que sua vida vejo estar

desesperada.

60

121e

Santas virgens, conservadas

em mui santo e limpo estado,

socorrei ao namorado…,

585

que vos vejais namoradas.

122e

Velho

Oh coitado!

Ai triste desatinado,

ainda torno a viver!

Cuidei que já era livrado...

590

Alcoviteira

Que esforço de namorado

e que prazer…

61

123e

Havede màora aquela!

Velho

Que remédio me dais vós?

Alcoviteira

Vivereis prazendo a Deos

595

e casar-vos-eis com ela.

124e

Velho

É vento, isso!

Alcoviteira

Assim veja o paraíso!...

Que não é ora tanto estremo!

Não curedes vós de riso,

600

que se faz tão improviso

como o demo.

62

125e

E também doutra maneira

se me eu quiser trabalhar.

Velho

Ide-lhe, rogo-vo-lo, falar

605

e fazei com que me queira!...

126e

Que pereço...

E dizei-lhe, que lhe peço

se lembre que tal fiquei

estimado em pouco preço,

610

e se tanto mal mereço,

nam no sei.

63

127e

E se tenho esta vontade,

que não se deve enojar,

mas antes, muito folgar

615

matar os de qualquer idade.

128e

E se reclama

que, sendo tão linda dama,

por ser velho, me aborrece,

dizei-lhe, que mal desama…,

620

porque minha alma, que a ama,

não envelhece.

64

129e

Alcoviteira

Sus, nome de Jesu Cristo!

Olhai-me pela cestinha...

Velho

Tornai logo muito asinha

625

que eu pagarei bem isto.

Vai-se a Alcoviteira e fica o Velho tangendo e cantando a cantiga seguinte:

130e

Canta:

Pues tengo razón señora

razón es que me la oiga.

Vem a Alcoviteira, e diz o Velho:

65

131e

[Velho]

Venhais embora, minha amiga!

Alcoviteira

Já ela fica de bom jeito…

630

Mas, para isto andar direito

é razão que vo-lo diga.

132e

Eu já, (senhor meu) não posso,

**

sem gastardes bem do vosso,

vencer uma moça tal!

635

Velho

Eu lhe peitarei em grosso!

Alcoviteira

I está o feito nosso

e não em al...

66

133e

Perca-se toda a fazenda

por salvardes vossa vida...

640

Velho

Seja ela disso servida

que escusada é mais contenda.

134e

Alcoviteira

Deos vos ajude

e vos dê muita saúde.

Que assim o haveis de fazer...

645

Que viola, nem alaúde,

nem quantos amores pude,

não quer ver.

67

135e

Remocou-me ela um brial

de seda, e uns toucados…

650

Velho

Eis aqui trinta cruzados,

que lho façam mui real.

Enquanto a Alcoviteira vai, o Velho torna a prosseguir seu cantar e tanger e, acabado, torna ela e diz:

136e

68

137e

Alcoviteira

Está tão saudosa de vós

que se perde a coitadinha!...

Há mister uma vasquinha

655

e três onças de retrós.

138e

Velho

Tomai.

Alcoviteira

A benção de vosso pai…

Bô namorado é o tal,

pois que gastais, descansai…

660

[A Alcoviteira afasta-se para sair, mas volta e, falando para o público, comenta... ]

Namorados de ai ai

são papa-sal...

[Para o demonstrar vai sacar mais dinheiro... ]

69

139e

Ui, tal fora, se me fora!...

Sabeis vós que me esquecia?

Uma adela me vendia

665

um firmal de uma senhora…

140e

Com um rubi

para o colo, de marfi,

lavrado de mil lavores…,

por cem cruzados.

Velho

Ei-los i.

670

[...e conclui dirigindo-se ao público.]

Alcoviteira

Isto màora, isto si,

são amores!

Vai-se, e o Velho torna a prosseguir sua música e, acabada, torna a Alcoviteira e diz:

70

141e

Alcoviteira

Dei màora uma topada…

Trago as sapatas rompidas

destas vindas, destas idas,

675

e em fim, não ganho nada!

142e

Velho

Eis aqui

dez cruzados para ti.

Alcoviteira

Começo com boa estreia.

Vem um Alcaide com quatro Beleguins e diz:

Alcaide

Dona, levantai-vos di.

680

Alcoviteira

E que me quereis vós assi?

Alcaide

À cadeia.

71

143e

Velho

Senhores, homens de bem,

escutem vossas senhorias...

Alcaide

Deixai essas cortesias!

685

Alcoviteira

Não hei medo de ninguém!

144e

Vistes ora!?

Alcaide

Levantai-vos di, senhora!

Dai ò demo esse rezar,

quem vos fez tão rezadora?

690

Alcoviteira

Deixai-me ora, na má hora

aqui acabar…

72

145e

Alcaide

Vinde, da parte del rei.

Alcoviteira

Muita vida seja a sua!

Não me leveis pela rua!

695

Deixai-me vós, que eu me irei.

146e

Beleguins

Sus andar!

Alcoviteira

Onde me quereis levar?

Ou! Quem me manda prender?

Nunca havedes de acabar

700

de me prender e soltar!?

Não há poder!

73

147e

Alcaide

Não se pode i al fazer.

Alcoviteira

Está já a carocha aviada…

Três vezes fui já açoutada

705

e em fim hei de viver.

Levam-na presa e fica o Velho dizendo:

148e

Velho

Oh forte hora!

Ah santa Maria, senhora,

já não posso livrar bem…

Cada passo se empiora!

710

Oh triste quem se namora

de ninguém. [ / de alguém.]

*

[ Êxodo ]

[Como no início da peça (logo após o prólogo), o Velho, de manhã, anda espairecendo...]

Vem uma Mocinha à horta e diz:

74

149e

Mocinha

Vedes aqui o dinheiro,

manda-me cá minha tia,

que assim como noutro dia

715

lhe mandeis a couve e o cheiro.

150e

Está pasmado!?

Velho

Mas, estou desatinado!

Mocinha

Estais doente, ou que haveis?

[Velho]

Ai, não sei, desconsolado…,

720

que nasci desventurado.

Mocinha

Não choreis...

[A Mocinha entrou para prever o futuro, comporta-se como uma vidente. E para consolar o Velho, acompanha-o até junto da fonte. Olhando a água a Mocinha descreve um panorama da sua visão do futuro.]

75

151e

Mais malfadada vai aquela!

Velho

Quem!?

Mocinha

Branca Gil.

Velho

Como?

Mocinha

Com cento açoutes no lombo

725

e uma carocha por capela!...

152e

E ter mão…

Leva tão bom coração

como se fosse em folia...

Oh que grandes que lhos dão!

730

[Velho]

E o triste do pregão,

por que dezia?

76

153e

Mocinha

"Por mui grande alcoviteira

e para sempre degredada"…

Vai tão desavergonhada

735

como ia a feiticeira!

[A vidente mostra de onde vem a folia da Alcoviteira, pelo que sucede quando a sua comitiva se cruza com um cortejo de casamento. Aquela folia expõe o ridículo do Velho.]

154e

E quando estava

– uma moça que casava –

na rua para ir casar,

e a coitada, que chegava,

740

a folia começava

de cantar…

77

155e

Uma moça tão formosa!...

Que vivia ali à Sé.

Velho

Oh coitado, a minha é...

745

Mocinha

Agora! Màora é vossa!

[Comentando a beleza da Moça, o olhar da Mocinha está atento na água e, tendo o Velho identificado a Moça, a sua atenção desviou-se da Alcoviteira para os noivos.]

156e

Vossa é treva!...

Mas ela, o noivo a leva…

Vai tão leda, tão contente!

Uns cabelos como Eva…

750

Ousadas, que não se lhe atreva

toda a gente!

[Concluída a descrição da sua visão, a Mocinha afasta-se para sair, – leva a couve e os cheiros que buscava – mas deixa um comentário de provocação ao Velho.]

78

157e

O noivo moço... Tão polido!

Não tirava os olhos dela…

E ela dele! Oh que estrela!

755

É ele um par bem escolhido.

158e

[Velho]

Oh roubado!

Da vaidade enganado,

da vida e da fazenda!

Ó velho siso enleado,

760

quem te meteu desastrado

em tal contenda?

79

159e

Se os juvenis amores,

os mais, tem fins desastrados…,

que farão as cãs lançadas

765

no conto dos amadores?

160e

Que sentias,

triste velho em fim dos dias?

Se a ti mesmo contemplaras,

souberas que não sabias

770

e viras como não vias,

e acertaras.

80

161e

Quero-me ir buscar a morte,

pois que tanto mal busquei.

Quatro filhas que criei

775

eu as pus em pobre sorte.

162e

Vou morrer...

Elas hão de padecer

porque não lhes deixo nada…

De quanta riqueza e haver

780

fui sem razão despender

mal gastada!

*

[Fim]


Observação:
Um fac-simile da edição da Copilaçam..., de 1562, de onde se transcreveu este Auto, a folhas CCI (verso) e seguintes, pode ser lido na Biblioteca Digital, Biblioteca Nacional de Portugal. http://purl.pt/