Auto de Inês Pereira

Gil Vicente, 1523

Auto de Inês Pereira. Feito por Gil Vicente, representado ao muito alto e mui poderoso rei dom João o terceiro, no seu convento de Tomar.

Era do Senhor de 1523.

O seu argumento é um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube.

As figuras são as seguintes: Inês Pereira, sua Mãe, Lianor Vaz, Pero Marques, dois judeus um chamado Latão e outro Vidal, um Escudeiro com um seu Moço, um Ermitão.

Entra logo Inês Pereira e finge que está lavrando só em casa, e canta esta cantiga:

Inês Pereira

Quien con veros pena y muere

qué hará cuando no os viere?

Falado:

Renego deste lavrar

e do primeiro que o usou

ao diabo que o eu dou

5

que tam mau é de aturar.

Oh Jesu que enfadamento

e que raiva e que tormento

que cegueira e que canseira.

Eu hei de buscar maneira

10

dalgum outro aviamento.

Coitada assi hei de estar

encerrada nesta casa

como panela sem asa

que sempre está num lugar.

15

E assi hão de ser logrados

dous dias amargurados

que eu posso durar viva

e assi hei de estar cativa

em poder de desfiados.

20

Antes o darei ao diabo

que lavrar mais nem pontada

já tenho a vida cansada

de jazer sempre dum cabo.

Todas folgam e eu não

25

todas vem e todas vão

onde querem senam eu.

Ui que pecado é o meu

ou que dor de coração?

Esta vida é mais que morta

30

sam eu coruja ou corujo

ou sam algum caramujo

que nam sai senão à porta?

E quando me dão algum dia

licença como a bugia

35

que possa estar à janela

é já mais que a Madanela

quando achou a aleluia.

Vem a Mãe da igreja e não na achando lavrando diz:

Mãe

Logo eu adevinhei

lá na missa onde eu estava

40

como a minha Inês lavrava

a tarefa que lhe eu dei.

Acaba esse travesseiro.

Ui naceu-te algum unheiro

ou cuidas que é dia santo?

45

Inês Pereira

Praza a Deos que algum quebranto

me tire de cativeiro.

Mãe

Toda tu estás aquela.

Choram-te os filhos por pão?

Inês Pereira

Prouvesse a Deos que já é rezão

50

de nam estar tam singela.

Mãe

Olhade lá o mau pesar

como queres tu casar

com fama de preguiçosa?

Inês Pereira

Mas eu mãe sam aguçosa

55

e vós dais-vos de vagar.

Mãe

Ora espera assi vejamos.

Inês Pereira

Quem já visse esse prazer.

Mãe

Cal-te que poderá ser

que ante Páscoa vem os Ramos.

60

Nam te apresses tu Inês

maior é o ano que o mês.

Quando te nam percatares

virão maridos a pares

e filhos de três em três.

65

Inês Pereira

Quero-me ora alevantar.

Folgo mais de falar nisso

assi Deos me dê o paraíso

mil vezes que nam lavrar.

Isto nam sei que o faz.

70

Mãe

Aqui vem Lianor Vaz.

Inês Pereira

E ela vem-se benzendo.

Lianor Vaz

Jesu que me eu encomendo

quanta cousa que se faz.

Mãe

Lianor Vaz que é isso?

75

Lianor Vaz

Venho eu mana amarela?

Mãe

Mais ruiva que uma panela.

Lianor Vaz

Nam sei como tenho siso.

Jesu Jesu que farei?

Não sei se me vá a el rei

80

se me vá ao cardeal.

Mãe

E como? Tamanho é o mal?

Lianor Vaz

Tamanho, eu to direi.

Vinha agora por ali

ò redor da minha vinha

85

e um clérigo mana minha

pardeos lançou mão de mi.

Nam me podia valer

diz que havia de saber

se era eu fêmea se macho.

90

Mãe

Ui seria algum mochacho

que brincava por prazer.

Lianor Vaz

Si mochacho sobejava.

Era um zote tamanhouço

e eu andava no retouço

95

tam rouca que nam falava.

Quando o vi pegar comigo

que me achei naquele perigo

assolverei nam assolverás

tomarei nam tomarás

100

Jesu homem que hás contigo?

Irmã eu te assolverei

c'o breviairo de Braga.

Que breviairo ou que praga

que nam quero. Áque del rei.

105

Quando viu revolta a voda

foi e esfarrapou-me toda

o cabeção da camisa.

Mãe

Assi me fez dessa guisa

outro no tempo da poda.

110

Eu cuidei que era jogo

e ele dai-o vós ò fogo.

Tomou-me tamanho riso

- riso em todo meu siso -

e ele deixou-me logo.

115

Lianor Vaz

Si agora ieramá

também eu me ria cá

das cousas que me dizia:

chamava-me luz do dia.

Nunca teu olho verá.

120

Se estivera de maneira

sem ser rouca bradara eu

mas logo o demo me deu

cadarrão e peitogueira.

Cócegas e cor de rir

125

e coxa pera fugir

e fraca pera vencer.

Porém pude-me valer

sem me ninguém acudir.

O demo e não pode al ser

130

se meteu no corpo dele.

Mãe

Mana conhecia-te ele?

Lianor Vaz

Mas queria-me conhecer.

Mãe

Vistes vós tamanho mal.

Lianor Vaz

Eu me irei ao cardeal

135

e far-lhe-ei assi mesura

e contar-lhe-ei a aventura

que achei no meu olival.

Mãe

Nam estás tu arranhada

de te carpir nas queixadas.

140

Lianor Vaz

Eu tenho as unhas cortadas

e mais estou trosquiada.

E mais pera que era isso

e mais pera que é o siso

e mais no meo da requesta

145

veo um homem de uma besta

que em vê-lo vi o paraíso.

E soltou-me porque vinha

bem contra sua vontade

porém a falar verdade

150

já eu andava cansadinha.

Nam me valia rogar

nem me valia chamar

áque de Vasco de Fóis

acudi-me como sóis.

155

E ele senam pegar.

Mais mansa Lianor Vaz

assi Deos te faça santa.

Trama te dê na garganta.

Como isso assi se faz?

160

Isto nam releva nada

tu nam vês que sam casada?

Mãe

Deras-lhe màora boa

e mordera-lo na coroa.

Lianor Vaz

Assi fora escomungada.

165

Nam lhe dera um empuxão

porque sou tam maviosa

que é cousa maravilhosa

e esta é a concrusão.

Leixemos isto, eu venho

170

com grande amor que vos tenho

porque diz o exemplo antigo

que amiga e bom amigo

mais aquenta que o bom lenho.

Inês está concertada

175

pera casar com alguém?

Mãe

Até agora com ninguém

nam é ela embaraçada.

Lianor Vaz

Em nome do anjo bento

eu vos trago um casamento

180

filha nam sei se vos praz.

Inês Pereira

E quando Lianor Vaz?

Lianor Vaz

Já vos trago aviamento.

Inês Pereira

Porém nam hei de casar

senam com homem avisado

185

- inda que pobre e pelado -

seja discreto em falar

que assi o tenho assentado.

Lianor Vaz

Eu vos trago um bom marido

rico, honrado, conhecido.

190

Diz que em camisa vos quer.

Inês Pereira

Primeiro eu hei de saber

se é parvo se é sabido.

Lianor Vaz

Nesta carta que aqui vem

pera vós filha de amores

195

veredes vós minhas flores

a discrição que ele tem.

Inês Pereira

Mostrai-ma cá quero ver.

Lianor Vaz

Tomai. E sabeis vós ler?

Mãe

Ui e ela sabe latim

200

e gramáteca e alfaqui

e sabe quanto ela quer.

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz assi:

Inês Pereira

Senhora amiga Inês Pereira:

Carta

Pero Marques vosso amigo

que ora estou na nossa aldea

205

mesmo na vossa mercea

me encomendo e mais digo…

Digo que benza-vos Deos

que vos fez de tam bom jeito

bom prazer e bom proveito

210

veja vossa mãe de vós.

E de mi também assi

ainda que eu vos vi

estoutro dia de folgar

e nam quisestes bailar

215

nem cantar presente mi.

Inês Pereira

Na voda de seu avô

ou donde me viu ora ele?

Lianor Vaz este é ele?

Lianor Vaz

Lede a carta sem dó

220

que inda eu sam contente dele.

Torna Inês Pereira a prosseguir com a carta:

Inês Pereira

Nem cantar presente mi…

Pois Deos sabe a rebentinha

que me fizestes então.

Ora Inês que hajais benção

225

de vosso pai e a minha

que venha isto a concrusão.

E rogo-vos como amiga

que samicas vós sereis

que de parte me faleis

230

antes que outrem vo-lo diga.

E se nam fiais de mi

esteja vossa mãe aí

e Lianor Vaz de presente.

Veremos se sois contente

235

que casemos na boa hora.

Inês Pereira

Dês que nasci até agora

nam vi tal vilão como este

nem tanto fora de mão.

Lianor Vaz

Nam queiras ser tam senhora

240

casa filha que te preste

nam percas a ocasião.

Queres casar a prazer

no tempo de agora Inês?

Antes casa em que te pês

245

que não é tempo de escolher.

Sempre eu ouvi dizer:

ou seja sapo ou sapinho

ou marido ou maridinho

tenha o que houver mister

250

este é o certo caminho.

Mãe

Pardeos, amiga essa é ela!?

Mata o cavalo de sela

e bô é o asno que me leva.

Lianor Vaz

Filha no Chão do Couce

255

quem nam puder andar choute

e mais quero quem me adore

que quem faça com que chore.

Chamá-lo-ei?

Inês Pereira

Si…

Venha e veja-me a mi.

260

Quero ver quando me vir

se perderá o presumir

logo em chegando aqui

pera me fartar de rir.

Mãe

Touca-te bem se vier

265

pois que pera casar anda.

Inês Pereira

Essa é boa demanda.

Cerimónias há mister

homem que tal carta manda.

Eu o estou cá pintando

270

sabeis mãe que eu adevinho?

Deve ser um vilanzinho.

Ei-lo se vem penteando

será com algum ancinho.

Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:

Pero Marques

Homem que vai onde eu vou

275

nam se deve de correr

ria embora quem quiser

que eu em meu siso estou.

Nam sei onde mora. Aqui

olhai que me esquece a mi.

280

Eu creo que nesta rua

esta parreira é sua

já conheço que é aqui.

Chega Pero Marques aonde elas estão e diz:

Pero Marques

Digo que esteis muito embora.

Folguei ora de vir cá

285

eu vos escrevi de lá

uma cartinha senhora

assi que e de maneira.

Mãe

Tomai aquela cadeira.

Pero Marques

E que val aqui uma destas?

290

Inês Pereira

Oh Jesu que Jão das Bestas

olhai aquela canseira.

Assentou-se com as costas pera elas e diz:

Eu cuido que não estou bem.

Mãe

Como vos chamam amigo?

Pero Marques

Eu Pero Marques me digo

295

como meu pai que Deos tem.

Faleceu perdoe-lhe Deos

que fora bem escusado

e ficámos dous heréus

perém meu é o morgado.

300

Mãe

De morgado é vosso estado?

Isso veria dos céus.

Pero Marques

Mais gado tenho eu já quanto

e o mor de todo o gado

digo maior algum tanto

305

[… ?]

[… ?]

E desejo ser casado

prouguesse ao spírito santo

com Inês que eu me espanto

quem me fez seu namorado.

Parece moça de bem

310

e eu de bem er também.

Ora vós ide lá vendo

se lhe vem milhor ninguém

a segundo o que eu entendo.

Cuido que lhe trago aqui

315

peras da minha pereira

hão de estar na derradeira.

Tende ora Inês por i.

Inês Pereira

E isso hei de ter na mão?

Pero Marques

Deitai as peas no chão.

320

Inês Pereira

As perlas pera enfiar

três chocalhos e um novelo

e as peas no capelo

e as peras onde estão?

Pero Marques

Nunca tal me aconteceu.

325

Algum rapaz mas comeu

que as meti no capelo

e ficou aqui o novelo

e o pentem nam se perdeu.

Pois trazia-as de boa mente.

330

Inês Pereira

Fresco vinha o presente

com folhinhas borrifadas.

Pero Marques

Nam que elas vinham chentadas

cá no fundo no mais quente.

Vossa mãe foi-se, ora bem.

335

Sós nos deixou ela assi

quanto eu quero-me ir daqui

não diga algum demo alguém.

Inês Pereira

E vós, que havíeis de fazer!?

Nem ninguém! Que há de dizer

340

o galante despejado?

Pero Marques

Se eu fora já casado

doutra arte havia de ser

como homem de bom recado.

Inês Pereira

Quam desviado este está.

345

Todos andam por caçar

suas damas sem casar

e este, tomade-o lá!

Pero Marques

Vossa mãe é lá no muro?

Inês Pereira

Minha mãe eu vos seguro

350

que ela venha cá dormir.

Pero Marques

Pois senhora quero-me ir

antes que venha o escuro.

Inês Pereira

E nam cureis mais de vir.

Pero Marques

Virá cá Lianor Vaz

355

veremos que lhe dizeis.

Inês Pereira

Homem nam aporfieis

que nam quero nem me praz.

Ide casar a Cascais.

Pero Marques

Nam vos anojarei mais

360

inda que saiba estalar

e prometo nam casar

até que vós nam queirais.

Estas vos são elas a vós

anda homem a gastar calçado

365

e quando cuida que é aviado

escarnefucham de vós.

Nam sei se fica lá a pea

pardeos bô ia eu à aldea.

Senhora cá fica o fato.

370

Inês Pereira

Olhai se o levou o gato.

Pero Marques

Inda nam tendes candea.

Ponho per cajo que alguém

vem como eu vim agora

e vos acha só a tal hora

375

parece-vos que será bem?

Ficai-vos ora com Deos

çarrai a porta sobre vós

com vossa candeazinha

e sicais sereis vós minha

380

entonces veremos nós.

Inês Pereira

Pessoa conheço eu

que levara outro caminho.

Casai lá com um vilanzinho

mais covarde que um judeu.

385

Se fora outro homem agora

e me topara a tal hora

estando assi às escuras

falara-me mil doçuras

ainda que mais nam fora.

390

Vem a Mãe e diz:

Mãe

Pero Marques foi-se já?

Inês Pereira

Pera que era ele aqui?

Mãe

Nam te agrada ele a ti?

Inês Pereira

Vá-se muito ieramá!

Que sempre disse e direi:

395

mãe eu me nam casarei

senam com homem discreto.

E assi vo-lo prometo

ou antes o leixarei.

Que seja homem mal feito

400

feo, pobre, sem feição

como tiver descrição

nam lhe quero mais proveito.

E saiba tanger viola

e coma eu pão e cebola

405

siquer uma cantiguinha

discreto feito em farinha

porque isto me degola.

Mãe

Sempre tu hás de bailar

e sempre ele há de tanger?

410

Se nam tiveres que comer

o tanger te há de fartar.

Inês Pereira

Cada louco com sua teima

com uma borda de boleima

e uma vez de água fria

415

nam quero mais cada dia.

Mãe

Como às vezes isso queima.

E que é desses escudeiros?

Inês Pereira

Eu falei ontem ali

que passaram por aqui

420

os judeus casamenteiros

e hão de vir logo aqui.

Aqui entram os judeus casamenteiros, chamados um Latão e o outro Vidal, e diz Vidal:

Vidal

Ou de cá.

Inês Pereira

Quem está lá?

Vidal

Nome del Deu aqui somos.

Latão

Nam sabeis quam longe fomos.

425

Vidal

Corremos a ira má.

Este, e eu.

Latão

Eu, e este

pola lama e polo pó

que era pera haver dó

com chuiva, sol e nordeste.

430

Foi a coisa de maneira

tal friúra e tal canseira

que trago as tripas maçadas

assi me fadem boas fadas

que me saltou caganeira.

435

Pera vossa mercê ver

o que nos encomendou.

O que nos encomendou

será se hoiver de ser.

Todo este mundo é fadiga!

440

Vós dissestes filha amiga

que vos buscássemos logo.

Vidal

E logo pusemos fogo.

Latão

Cal-te.

Vidal

Nam queres que diga

nam sou eu também do jogo?

445

Latão

Nam fui eu também contigo

tu e eu nam somos eu?

Tu judeu e eu judeu

nam somos massa dum trigo?

Vidal

Si somos juro al Deu.

450

Latão

Deixa-me falar.

Vidal

Já calo.

Senhora há já três dias.

Latão

Falas-lhe tu ou eu falo?

Ora dize o que dizias

que foste que fomos que ias

455

buscá-lo esgaravatá-lo.

Vidal

Vós amor quereis marido

discreto e de viola.

Latão

Esta moça nam é tola

que quer casar por sentido.

460

Vidal

Judeu queres-me leixar?

Latão

Deixo, não quero falar.

Vidal

Buscámo-lo.

Latão

Demo foi logo.

Crede que o vosso rogo

vencera o Tejo e o mar.

465

Eu cuido que falo e calo

calo eu agora ou não?

Ou falo se vem à mão?

Nam digas que nam te falo.

Inês Pereira

Jesu guarde-me ora Deos

470

nam falará um de vós?

Já queria saber isso.

Mãe

Que siso Inês que siso

tens debaixo desses véus.

Inês Pereira

Diz o exemplo da velha:

475

o que nam haveis de comer

dexai-o a outrem mexer.

Mãe

Eu nam sei quem te aconselha.

Inês Pereira

Enfim que novas trazeis?

Vidal

O marido que quereis

480

de viola e dessa sorte

nam no há senam na corte

que cá não no achareis.

Falámos a Badajoz

músico discreto solteiro

485

este fora o verdadeiro

mas soltou-se-nos da noz.

Fomos a Villacastim

e falou-nos em latim:

vinde cá daqui a uma hora

490

e trazei-me essa senhora.

Inês Pereira

Tudo é nada enfim.

Vidal

Esperai, aguardai ora.

Soubemos dum escudeiro

de feição de atafoneiro

495

que virá logo essora.

Que fala e como ora fala

estrogirá esta sala

e tange e como ora tange

alcança quanto abrange

500

e se preza bem da gala.

Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz falando só:

Escudeiro

Se esta senhora é tal

como os judeus ma gabaram

certo os anjos a pintaram

e nam pode ser i al.

505

Diz que os olhos com que via

eram de santa Luzia

cabelos da Madanela.

Se ela fosse donzela

tudo essoutro passaria.

510

Moça de vila será ela

com sinalzinho postiço

e sarnosa no toutiço

como burra de Castela.

Eu assi como chegar

515

cumpre-me bem atentar

se é garrida se é honesta

porque o milhor da festa

é achar siso e calar.

Mãe

Se este escudeiro há de vir

520

e é homem de discrição

hás-te de pôr em feição

e falar pouco e nam rir.

E mais Inês nam muito olhar

e muito chão o menear

525

por que te julguem por muda

porque a moça sesuda

é uma perla pera amar.

Escudeiro

Olha cá Fernando eu vou

ver a com que hei de casar

530

visa-te que hás de estar

sem barrete onde eu estou.

Moço

Como a rei corpo de mi

mui bem vai isso assi.

Escudeiro

E se cuspir pola ventura

535

põe-lhe o pé e faze mesura.

Moço

Ainda eu isso nam vi.

Escudeiro

E se me vires mintir

gabando-me de privado

está tu dissimulado

540

ou sai-te lá fora a rir.

Isto te aviso daqui

faze-o por amor de mi.

Moço

Porém senhor digo eu

que mau calçado é o meu

545

pera estas vistas assi.

Escudeiro

Que farei que o sapateiro

nam tem solas nem tem pele?

Moço

Sapatos me daria ele

se me vós désseis dinheiro.

550

Escudeiro

Eu o haverei agora

e mais calças te prometo.

Moço

Homem que nam tem nem preto

casa muito na màora.

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira e alevantam-se todos e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:

Escudeiro

Antes que mais diga agora

555

Deos vos salve fresca rosa

e vos dê por minha esposa

por molher e por senhora.

Que bem vejo

nesse ar nesse despejo

560

mui graciosa donzela

que vós sois minha alma aquela

que eu busco e que desejo.

Obrou bem a natureza

em vos dar tal condição

565

que amais a discrição

muito mais que a riqueza.

Bem parece

que só discrição merece

gozar vossa fermosura

570

que é tal que de ventura

outra tal nam se acontece.

Senhora eu me contento

receber-vos como estais

- se vós vos não contentais -

575

o vosso contentamento

pode falecer, nô mais.

Latão

Como fala.

Vidal

Mas ela como se cala.

Tem atento o ouvido.

580

Latão

Este há de ser seu marido

segundo a cousa se abala.

Escudeiro

Eu nam tenho mais de meu

somente ser comprador

do marichal meu senhor

585

e sam escudeiro seu.

Sei bem ler

e muito bem escrever

e bom jogador de bola

e quanto a tanger viola

590

logo me ouvireis tanger.

Moço que estás lá olhando?

Moço

Que manda vossa mercê?

Escudeiro

Que venhas cá.

Moço

Pera quê?

Escudeiro

Pera fazeres o que mando.

595

Moço

Logo vou.

O diabo me tomou

tirar-me de João Montês

por servir um tavanês

mor doudo que Deos criou.

600

Escudeiro

Fui despedir um rapaz

por tomar este ladrão

que valia Perpinhão.

Moço.

Moço

Que vos praz?

Escudeiro

A viola.

605

Moço

Oh como ficará tola

se nam fosse casar ante

c'o mais sáfio bargante

que coma pão e cebola.

Ei-la aqui bem temperada

610

nam tendes que temperar.

Escudeiro

Faria bem de ta quebrar

na cabeça bem migada.

Moço

E se ela é emprestada

quem na havia de pagar?

615

Meu amo eu quero-me ir.

Escudeiro

E quando queres partir?

Moço

Antes que venha o Inverno

porque vós não dais governo

pera vos ninguém servir.

620

Escudeiro

Nam dormes tu que te farte?

Moço

No chão e o telhado por manta

e çarra-se-me a garganta

com fome.

Escudeiro

Isso tem arte.

Moço

Vós sempre zombais assi.

625

Escudeiro

Oh que boas vozes tem

esta viola aqui.

Deixa-me casar a mi

depois eu te farei bem.

Mãe

Agora vos digo eu

630

que Inês está no paraíso.

Inês Pereira

Que tendes de ver com isso?

Todo o mal há de ser meu.

Mãe

Quanta doudice.

Inês Pereira

Como é seca a velhice

635

leixai-me ouvir e folgar

que nam me hei de contentar

de casar com parvoíce.

Pode ser maior riqueza

que um homem avisado?

640

Mãe

Muitas vezes mal pecado

é milhor boa simpreza.

Latão

Ora ouvi e ouvireis.

Escudeiro cantareis

algua boa cantadela

645

namorai esta donzela

esta cantiga direis:

Canta o Judeu:

Canas do amor canas

canas do amor.

Polo longo de um rio

650

canaval vi florido

canas do amor.

Canta o Escudeiro o romance de Mal me quieren en Castilla, e diz Vidal:

Vidal

Latão já o sono é comigo

como oivo cantar guaiado

que nam vai esfandegado.

655

Latão

Esse é o demo que eu digo.

Viste cantar dona Sol

Pelo mar vai a vela

vela vai polo mar.

Vidal

Filha Inês assi vivais

660

que tomeis esse senhor

escudeiro cantador

e caçador de pardais.

Sabedor, rebolvedor

falador, gracejador

665

afoitado pela mão

e sabe de gavião.

Tomai-o por meu amor.

Podeis topar um rabugento

desmazalado, baboso

670

descancarrado, brigoso

medroso, carrapatento.

Este escudeiro aosadas

onde se derem pancadas

ele as há de levar

675

boas senam apanhar.

Nele tendes boas fadas.

Mãe

Quero rir com toda a mágoa

destes teus casamenteiros

nunca vi judeus ferreiros

680

aturar tam bem a frágua.

Não te é milhor mal por mal

Inês um bom oficial

que te ganhe nessa praça

que é um escravo de graça

685

e casarás com teu igual?

Latão

Senhora perdei cuidado.

O que há de ser há de ser

e ninguém pode tolher

o que está determinado.

690

Vidal

Assi diz rabi Zarão.

Mãe

Inês, guar-te de rascão!

Escudeiro queres tu?

Inês Pereira

Jesu nome de Jesu

quam fora sois de feição.

695

Já minha mãe adevinha.

Houvestes por vaidade

casar à vossa vontade

eu quero casar à minha.

Mãe

Casa filha muito embora.

700

Escudeiro

Dai-me essa mão senhora.

Inês Pereira

Senhor de mui boa mente.

Escudeiro

Por palavras de presente

vos recebo desde agora.

Nome de Deos assi seja.

705

- Eu Brás da Mata escudeiro -

recebo a vós Inês Pereira

por molher e por parceira

como manda a santa igreja.

Inês Pereira

Eu aqui diante Deos

710

Inês Pereira recebo a vós

Brás da Mata sem demanda

como a santa igreja manda.

Latão

Juro al Deu aí somos nós.

Os Judeus ambos

Alça manim dona o dono há

715

arrea espeçulá

bento o Deu de Jacob

bento o Deu que a faraó

espantou e espantará…

Bento o Deu de Abraão

720

benta a terra de Canão

pera bem sejais casados.

Vidal

Dai-nos cá senhos ducados.

Mãe

Amenhã vo-los darão.

Pois assi é bem será

725

que nam passe isto assi

eu quero chegar ali

chamar meus amigos cá.

E cantarão de terreiro!...

Escudeiro

Oh quem me fora solteiro.

730

Inês Pereira

Já vos vós arrependeis?

Escudeiro

Ó esposa nam faleis

que casar é cativeiro.

Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas per nome Luzia:

Luzia

Inês por teu bem te seja.

Oh que esposo e que alegria.

735

Inês Pereira

Venhas embora Luzia

e cedo te eu assi veja.

Mãe

Ora vai tu ali Inês

e bailareis três por três.

Fernando

Tu connosco Luzia aqui

740

e a desposada ali.

Ora vede qual direis.

Cantam todos a cantiga que se segue:

Mal ferida va la garza

enamorada…

Sola va y gritos daba.

745

A las orillas de un río

la garza tenía el nido

ballestero la ha herido

en el alma.

Sola va y gritos daba.

750

Fernando

Ora senhores honrados

ficai com vossa mercê

e nosso senhor vos dê

com que vivais descansados.

Isto foi assi agora

755

mas melhor será outra hora

perdoai pelo presente

foi pouco e de boa mente

com vossa mercê senhora.

Luzia

Ficai com Deos desposados

760

com prazer e com saúde

e sempre ele vos ajude

com que sejais bem logrados.

Mãe

Ficai com Deos filha minha

nam virei cá tam asinha.

765

A minha benção hajais

esta casa em que ficais

vos dou e vou-me à casinha.

Senhor filho e senhor meu

pois que já Inês é vossa

770

vossa molher e esposa

encomendo-vo-la eu.

E pois que dês que nasceu

a outrem nam conheceu

senam a vós por senhor

775

que lhe tenhais muito amor

que amado sejais no céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro, e senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:

Canta

Inês Pereira

Si no os hubiera mirado

no penara

pero tan poco os mirara.

780

O Escudeiro vendo cantar a Inês Pereira, mui agastado lhe diz:

Escudeiro

Vós cantais Inês Pereira

em bodas me andáveis vós?

Juro ao corpo de Deos

que esta seja a derradeira.

Se vos eu vejo cantar

785

eu vos farei assoviar.

Inês Pereira

Bofé senhor meu marido

se vós disso sois servido

bem o posso eu escusar.

Escudeiro

Mas é bem que o escuseis

790

e outras cousas que não digo.

Inês Pereira

Por que bradais vós comigo?

Escudeiro

Será bem que vos caleis.

E mais sereis avisada

que não me respondais nada

795

em que ponha fogo a tudo

porque o homem sesudo

traz a molher sopeada.

Vós não haveis de falar

com homem nem molher que seja

800

nem somente ir à igreja

nam vos quero eu leixar.

Já vos preguei as janelas

por que vos não ponhais nelas

estareis aqui encerrada

805

nesta casa tam fechada

como freira de Oudivelas.

Inês Pereira

Que pecado foi o meu?

Por que me dais tal prisão?

Escudeiro

Vós buscais discrição

810

que culpa vos tenho eu?

Pode ser maior aviso

maior discrição e siso

que guardar eu meu tisouro?

Nam sois vós molher meu ouro?

815

Que mal faço em guardar isso?

Vós não haveis de mandar

em casa somente um pêlo

se eu disser isto é novelo

havei-lo de confirmar.

820

E mais quando eu vier

de fora haveis de tremer

e cousa que vós digais

nam vos há de valer mais

que aquilo que eu quiser.

825

Moço às partes dalém

me vou fazer cavaleiro.

Moço

Se vós tivésseis dinheiro

nam seria senam bem.

Escudeiro

Tu hás de ficar aqui

830

olha por amor de mi

o que faz tua senhora

fechá-la-ás sempre de fora.

Vós lavrai ficai per i.

Moço

Com o que me vós deixais

835

nam comerei eu galinhas.

Escudeiro

Vai-te tu por essas vinhas

que diabo queres mais?

Moço

Olhai olhai como rima

e depois de ida a vendima?

840

Escudeiro

Apanha desse rabisco.

Moço

Pesar ora de sam Pisco

convidarei minha prima.

E o rabisco acabado

ir-me-ei espojar às eiras.

845

Escudeiro

Vai-te por essas figueiras

e farta-te desmazelado.

Moço

Assi.

Escudeiro

Pois que cuidavas?

E depois virão as favas.

Conheces túbaras da terra?

850

Moço

I-vos vós embora à guerra

que eu vos guardarei oitavas.

Ido o Escudeiro, diz o Moço:

Moço

Senhora o que ele mandou

nam posso menos fazer.

Inês Pereira

Pois que te dá de comer

855

faze o que te encomendou.

Moço

Vós fartai-vos de lavrar

eu me vou desenfadar

com essas moças lá fora.

Vós perdoai-me senhora

860

porque vos hei de fechar.

Aqui fica Inês Pereira só fechada lavrando e cantando esta cantiga:

Inês Pereira

Quem bem tem e mal escolhe

por mal que lhe venha nam se anoje.

Falado:

Renego da discrição

comendo ao demo o aviso

865

que sempre cuidei que nisso

estava a boa condição.

Cuidei que fossem cavaleiros

fidalgos e escudeiros

nam cheos de desvarios

870

e em suas casas macios

e na guerra lastimeiros.

Vede que cavalaria

vede já que mouros mata

quem sua molher maltrata

875

sem lhe dar de paz um dia.

E sempre ouvi dizer

que homem que isto fizer

nunca mata drago em vale

nem mouro que chamem Ale

880

e assi deve de ser.

Juro em todo meu sentido

que se solteira me vejo

assi como eu desejo

que eu saiba escolher marido.

885

À boa fé sem mal engano

pacífico todo o ano

que ande a meu mandar.

Havia-me eu de vingar

deste mal e deste dano.

890

Entra o Moço com uma carta de Arzila e diz:

Moço

Esta carta vem dalém

creo que é de meu senhor.

Inês Pereira

Mostrai cá meu guarda mor

veremos o que aí vem.

Lê o sobrescrito:

À mui prezada senhora

895

Inês Pereira da Grã

a senhora minha irmã.

De meu irmão. Venha embora.

Moço

Vosso irmão está em Arzila

apostarei que i vem

900

nova de meu senhor também.

Inês Pereira

Já ele partiu de Tavila?

Moço

Há três meses que é passado.

Inês Pereira

Aqui virá logo recado

se lhe vai bem ou que faz.

905

Moço

Bem pequena é a carta assaz.

Inês Pereira

Carta de homem avisado.

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:

Inês Pereira

Muito honrada irmã

esforçai o coração

e tomai por devação

910

de querer o que Deos quer.

E isto que quer dizer?

Prossegue:

E nam vos maravilheis

de cousa que o mundo faça

que sempre nos embaraça

915

com cousas. Sabei que indo

vosso marido fogindo

da batalha pera a vila

a mea légua de Arzila

o matou um mouro pastor.

920

Moço

Oh meu amo e meu senhor.

Inês Pereira

Dai-me vós cá essa chave

e i buscar vossa vida.

Moço

Oh que triste despedida.

Inês Pereira

Mas que nova tam suave

925

Desatado é o nó.

se eu por ele ponho dó

o diabo me arrebente.

Pera mi era valente

e matou-o um mouro só.

930

Guardar de cavaleirão

barbudo repetenado

que em figura de avisado

é malino e sotrancão.

Agora quero tomar

935

pera boa vida gozar

um muito manso marido

nam no quero já sabido

pois tam caro há de custar.

Aqui vem Lianor Vaz e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:

Lianor Vaz

Como estais Inês Pereira?

940

Inês Pereira

Muito triste Lianor Vaz.

Lianor Vaz

Que fareis ao que Deos faz?

Inês Pereira

Casei por minha canseira.

Lianor Vaz

Se ficastes prenhe basta.

Inês Pereira

Bem quisera eu dele casta

945

mas nam quis minha ventura.

Lianor Vaz

Filha nam tomeis tristura

que a morte a todos gasta.

O que havedes de fazer?

Casade-vos filha minha.

950

Inês Pereira

Jesu Jesu tam asinha

isso me haveis de dizer?

Quem perdeu um tal marido

tam discreto e tam sabido

e tam amigo de minha vida.

955

Lianor Vaz

Dai isso por esquecido

e buscai outra guarida.

Pero Marques tem que herdou

fazenda de mil cruzados

mas vós quereis avisados.

960

Inês Pereira

Nam, já esse tempo passou.

Sobre quantos mestres são

a experiência dá lição.

Lianor Vaz

Pois tendes esse saber

querei ora quem vos quer

965

dai ò demo a openião.

Vai Lianor Vaz por Pero Marques e fica Inês Pereira só dizendo:

Inês Pereira

Andar. Pero Marques seja.

Quero tomar por esposo

quem se tenha por ditoso

de cada vez que me veja.

970

Por usar de siso mero

asno que me leve quero

e nam cavalo folão

antes lebre que leão

antes lavrador que Nero.

975

Vem Lianor Vaz com Pero Marques, e diz Lianor Vaz:

Lianor Vaz

Nô mais cerimónias agora

abraçai Inês Pereira

por molher e por parceira.

Pero Marques

Há homem empacho màora.

Quanta a dizer abraçar

980

depois que a eu usar

entonces poderá ser.

Inês Pereira

Nam lhe quero mais saber

já me quero contentar.

Lianor Vaz

Ora dai-me essa mão cá

985

sabeis as palavras si?

Pero Marques

Ensinaram-mas a mi

porém esquecem-me já.

Lianor Vaz

Ora dizei como digo.

Pero Marques

E tendes vós aqui trigo

990

pera nos jeitar por cima?

Lianor Vaz

Inda é cedo, como rima.

Pero Marques

Soma vós casais comigo!

E eu convosco pardelhas.

Nam compre aqui mais falar

995

e quando vos eu negar

que me cortem as orelhas.

Lianor Vaz

Vou-me, ficai-vos embora.

Vai-se e diz Inês Pereira:

Marido sairei eu agora

que há muito que nam saí?

1000

Pero Marques

Si molher saí vós i

que eu me irei para fora.

Inês Pereira

Marido nam digo disso.

Pero Marques

Pois que dizeis vós molher?

Inês Pereira

Ir folgar onde eu quiser.

1005

[ …isso]

Pero Marques

I onde quiserdes ir

vinde quando quiserdes vir

estai quando quiserdes estar.

Com que podeis vós folgar

que eu nam deva consentir?

1010

Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:

Ermitão

Señores por caridad

dad limosna al dolorido

ermitaño de Cupido

para siempre en soledad

pues su siervo soy nascido.

1015

Por exemplo

me metí en su santo templo

ermitaño en pobre ermita

fabricada de infinita

tristeza en quien contemplo.

1020

[ …ita]

Adonde rezo mis horas

y mis días y mis años

mis servicios y mis daños

donde tú mi alma lloras

el fin de tantos engaños.

1025

Y acabando

las horas todas llorando

tomo las cuentas una a una

con que tomo a la fortuna

cuenta del mal en que ando

1030

sin esperar paga alguna.

Y ansí sin esperanza

de cobrar lo merescido

sirvo allí mis días Copido

con tanto amor sin mudanza

1035

que soy su santo escogido.

Oh señores

los que bien os va de amores

dad limosna al sin holgura

que habita en sierra escura

1040

uno de los amadores

que tuvo menos ventura.

Yo rogaré al Dios de mí

en que mis sentidos traigo

que recibáis mejor pago

1045

de lo que yo recebí

en esta vida que hago.

Y rezaré

con gran devoción y fe

que Dios os libre de engaño

1050

que eso me hizo ermitaño

y para siempre seré

pues para siempre es mi daño.

Inês Pereira

Olhai cá marido amigo

eu tenho por devação

1055

dar esmola a um ermitão

e nam vades vós comigo.

Pero Marques

I-vos embora molher

nam tenho lá que fazer.

Inês Pereira

Tomai a esmola padre lá

1060

pois que Deos vos trouxe aqui.

Ermitão

Sea por amor de mí

vuestra buena caridad.

Deo gracias mi señora.

La limosna mata el pecado

1065

pero vos tenéis cuidado

de matarme cada hora.

Debéis saber

para merced me hacer

que por vos soy ermitaño

1070

y aún más os desengaño

que esperanzas de os ver

me hicieron vestir tal paño.

Inês Pereira

Jesu Jesu manas minhas

sois vós aquele que um dia

1075

em casa de minha tia

me mandastes camarinhas.

E quando aprendia a lavrar

mandáveis-me tanta cousinha

eu era ainda Inesinha

1080

nam vos queria falar.

Ermitão

Señora téngoos servido

y vos a mí despreciado.

Haced que el tiempo pasado

no se cuente por perdido.

1085

Inês Pereira

Padre mui bem vos entendo

ò demo vos encomendo

que bem sabeis vós pedir.

Eu determino lá d´ir

à ermida Deos querendo.

1090

Ermitão

Y cuándo?

Inês Pereira

I-vos meu santo

que eu irei um dia destes

muito cedo muito prestes.

Ermitão

Señora yo me voy en tanto.

Inês Pereira

Em tudo é boa a concrusão.

1095

Marido aquele ermitão

é um anjinho de Deos.

Pero Marques

Corregê vós esses véus

e ponde-vos em feição.

Inês Pereira

Sabeis vós o que eu queria?

1100

Pero Marques

Que quereis minha molher?

Inês Pereira

Que houvésseis por prazer

de irmos lá em romaria.

Pero Marques

Seja logo sem deter.

Inês Pereira

Este caminho é comprido

1105

contai uma estória marido.

Pero Marques

Bofá que me praz molher.

Inês Pereira

Passemos primeiro o rio.

Descalçai-vos.

Pero Marques

E pois como?

Inês Pereira

E levar-me-eis ao ombro

1110

não me corte a madre o frio.

Põe-se Inês Pereira às costas do marido e diz:

Inês Pereira

Marido assi me levade.

Pero Marques

Ides à vossa vontade?

Inês Pereira

Como estar no paraíso.

Pero Marques

Muito folgo eu com isso.

1115

Inês Pereira

Esperade ora esperade…

Olhai que lousas aquelas

pera poer as talhas nelas.

Pero Marques

Quereis que as leve?

Inês Pereira

Si.

Uma aqui e outra aqui.

1120

Oh como folgo com elas.

Cantemos marido quereis?

Pero Marques

Eu nam saberei entoar.

Inês Pereira

Pois eu hei só de cantar

e vós me respondereis

1125

cada vez que eu acabar:

Pois assi se fazem as cousas.

Canta Inês Pereira:

Marido cuco me levades

e mais duas lousas.

Pero Marques

Pois assi se fazem as cousas.

1130

Inês Pereira

Bem sabedes vós marido

quanto vos amo

sempre fostes percebido

pera gamo.

Carregado ides nosso amo

1135

com duas lousas.

Pero Marques

Pois assi se fazem as cousas.

Inês Pereira

Bem sabedes vós marido

quanto vos quero

sempre fostes percebido

1140

pera cervo.

Agora vos tomou o demo

com duas lousas.

Pero Marques

Pois assi se fazem as cousas.

1144

E assi se vão e se acaba o dito auto.

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