Auto da Feira

Gil Vicente, 1524

A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente príncipe el rei dom João, o terceiro deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal. Na era do Senhor de 1527 [1524].

Figuras:

Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Móneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Dorotea, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio e posto em seu assento diz:

Mercúrio

Pera que me conheçais

e entendais meus partidos

todos quantos aqui estais

afinai bem os sentidos

mais que nunca, muito mais.

5

Eu sou estrela do céu

e depois vos direi qual

e quem me cá decendeu

e a quê e todo o al

que me a mi aconteceu.

10

E porque a estronomia

anda agora mui maneira

mal sabida e lisonjeira

eu à honra deste dia

vos direi a verdadeira.

15

Muitos presumem saber

as operações dos céus

e que morte hão de morrer

e o que há de acontecer

aos anjos e a Deos.

20

E ao mundo e ao diabo

e que o sabem tem por fé

e eles todos em cabo

terão um cão polo rabo

e nam sabem cujo é.

25

E cada um sabe o que monta

nas estrelas que olhou

e ao moço que mandou

nam lhe sabe tomar conta

dum vintém que lhe entregou.

30

Porém quero-vos pregar

sem mentiras nem cautelas

o que per curso de estrelas

se poderá adevinhar

pois no céu naci com elas.

35

E se Francisco de Melo

que sabe ciência avondo

diz que o céu é redondo

e o sol sobre amarelo

diz verdade, não lho escondo.

40

Que se o céu fora quadrado

nam fora redondo senhor

e se o sol fora azulado

de azul fora a sua cor

e nam fora assi dourado.

45

E porque está governado

per seus cursos naturais

neste mundo onde morais

nenhum homem aleijado

se for manco e corcovado

50

não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes

vos trazem tam compassados

que todos quantos nacestes

se nacestes e crecestes

55

primeiro fostes gerados.

E que fazem os poderes

dos sinos resplandecentes?

Quê? Fazem que todalas gentes

ou são homens ou molheres

60

ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum

influe vida contina

a morte de cada um

é aquela de que se fina

65

e nam doutro mal nenhum.

Outrossi o terremoto

que às vezes causa perigo

faz fazer ao morto voto

de nam bulir mais consigo

70

quanto a de seu próprio moto.

E a claridade encendida

dos raios piramidais

causam sempre nesta vida

que quando a vista é perdida

75

os olhos são por demais.

E que mais quereis saber

desses temporais e disso

se nam que se quer chover

está o céu pera isso

80

e a terra pera a receber?

A lua tem este jeito

vê que clérigos e frades

já nam tem ao céu respeito

mingua-lhes as santidades

85

e crece-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars speculum belli et Venus regina musicae secundum

Joannes Monteregio:

Mars planeta dos soldados

faz nas guerras conteúdas

em que os reis são ocupados

que morrem de homens barbados

90

mais que molheres barbudas.

E quando Vénus declina

a retrogada em seu cargo

nam se paga o desembargo

no dia que se ele assina

95

mas antes per tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro

são tão maus de haver agora

que quando os põe no madeiro

chama o povo ao carneceiro

100

senhor, c'os barretes fora.

Depois do povo agravado

que já mais fazer nam pode

invoca o sino do bode

Capricórnio chamado

105

porque Libra nam lhe acode.

E se este nam hás tomado

nem Touro Carneiro assi

vai-te ao sino do pescado

chamado Picis em latim

110

e serás remediado.

E se Picis nam tem ensejo

porque pode nam no haver

vai-te ao sino do cranguejo

sinum Cancer Ribatejo

115

que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter rex regum dominus dominantium:

Jupiter rei das estrelas

deos das pedras preciosas

mui mais preciosa que elas

pintor de todalas rosas

120

rosa mais fermosa delas

é tam alto seu reinado

influência e senhoria

que faz per curso ordenado

que tanto val um cruzado

125

de noite como de dia.

E faz que uma nau veleira

mui forte muito segura

que inda que o mar não queira

e seja de cedro a madeira

130

nam preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus zodiacus sequitur declaratio operationem suam:

No zodíaco acharão

doze moradas palhaças

onde os sinos estão

no Inverno e no Verão

135

dando a Deos infindas graças.

Escutai bem nam durmais

sabereis per conjeituras

que os corpos celestiais

nam são menos nem são mais

140

que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram

se das estrelas souberam

foi que a estrela que olharam

está onde a puseram

145

e faz o que lhe mandaram.

E cuidam que Ursa Maior

Ursa Minor e o Dragão

e Lepus que tem paixão

porque um corregedor

150

manda enforcar um ladrão.

Nam porque as costolações

nam alcançam mais poderes

que fazer que os ladrões

sejam filhos de molheres

155

e os mesmos pais barões.

E aqui quero acabar.

E pois vos disse até aqui

o que se pode alcançar

quero-vos dizer de mi

160

e o que venho buscar.

Eu sam Mercúrio, senhor

de muitas sabedorias

e das moedas reitor

e deos das mercadorias

165

nestas tenho meu vigor.

Todos tratos e contratos

valias preços avenças

carestias e baratos

ministro suas pertenças

170

até as compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi

na corte de Portugal

feira em dia de Natal

ordeno uma feira aqui

175

pera todos em geral.

Faço mercador mor

ao Tempo que aqui vem

e assi o hei por bem

e nam falte comprador

180

porque o Tempo tudo tem.

Entra o Tempo e arma uma tenda com muitas cousas e diz:

Tempo

Em nome daquele que rege nas praças

de Anvers e Medina as feiras que tem

começa-se a feira chamada das Graças

à honra da virgem parida em Belém.

185

Quem quiser feirar

venha trocar que eu nam hei de vender.

Todas virtudes que houverem mister

nesta minha tenda as podem achar

a troco de cousas que hão de trazer.

190

Todos remédios especialmente

contra fortunas e odversidades

e aqui se vendem na tenda presente

conselhos maduros de sãs calidades.

Aqui se acharão

195

a mercadoria de amor e rezão

justiça e verdade, a paz desejada

porque a cristandade é toda gastada

só em serviço da openião.

Aqui achareis o temor de Deos

200

que é já perdido em todos estados

aqui achareis as chaves dos céus

mui bem guarnecidas em cordões dourados.

E mais achareis

soma de contas todas de contar

205

quam poucos e poucos haveis de lograr

as feiras mundanas e mais contareis

as contas sem conto que estão por contar.

E porque as virtudes senhor Deos que digo

se foram perdendo de dias em dias

210

com a vontade que deste o messias

memoria o teu anjo que ande comigo.

Senhor porque temo

ser esta feira de maus compradores

porque agora os mais sabedores

215

fazem as compras na feira do demo

e os mesmos diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo e diz:

Serafim

À feira à feira igrejas mosteiros

pastores das almas, papas adormidos

comprai aqui panos mudai os vestidos

220

buscai as samarras dos outros primeiros.

Os antecessores.

Feirai o carão que trazeis dourado

ó presidentes do crucificado

lembrai-vos da vida dos santos pastores

225

do tempo passado.

Ó príncipes altos, império facundo

guardai-vos da ira do senhor dos céus

comprai grande soma do temor de Deos

na feira da virgem senhora do mundo…

230

Exemplo da paz,

pastora dos anjos, luz das estrelas.

À feira da virgem donas e donzelas

porque este mercador sabei que aqui traz

as cousas mais belas.

235

Entra um Diabo com uma tendinha diante de si como bofolinheiro e diz:

Diabo

Eu bem me posso gavar

e cada vez que quiser

que na feira onde eu entrar

sempre tenho que vender

e acho quem me comprar.

240

E mais vendo muito bem

porque sei bem o que entendo

e de tudo quanto vendo

nam pago sisa a ninguém

por tratos que ande fazendo.

245

Quero-me fazer à vela

nesta santa feira nova

verei os que vem a ela

e mais verei quem me estrova

de ser eu o maior dela.

250

Tempo

És tu também mercador

que a tal feira te ofereces?

Diabo

Eu nam sei se me conheces.

Tempo

Falando com salvanor

tu diabo me pareces.

255

Diabo

Falando com salvos rabos

inda que me tens por vil

acharás homens cem mil

honrados que são diabos

que eu nam tenho nem ceitil.

260

E bem honrados te digo

e homens de muita renda

que tem dívedo comigo

pois nam me tolhas a venda

que nam hei nada contigo.

265

Tempo

ao Serafim:

Senhor em toda maneira

acodi a este ladrão

que há de danar a feira.

Diabo

Ladrão? Pois haja eu perdão

se vos meter em canseira.

270

Olhai cá Anjo de bem

eu como cousa perdida

nunca me tolhe ninguém

que nam ganhe minha vida

como quem vida nam tem.

275

Vendo dessa marmelada

e às vezes grãos torrados

isto nam releva nada

e em todolos mercados

entra a minha quintalada.

280

Serafim

Muito bem sabemos nós

que vendes tu cousas vis.

Diabo

I há de homens roins

mais mil vezes que nam bôs

como vós mui bem sentis.

285

E estes hão de comprar

disto que trago a vender

que são artes de enganar

e cousas pera esquecer

o que deviam lembrar.

290

Que o sages mercador

há de levar ao mercado

o que lhe compram milhor

porque a roim comprador

levar-lhe roim borcado.

295

E mais as boas pessoas

são todas pobres a eito

e eu por este respeito

nunca trato em cousas boas

porque nam trazem proveito.

300

Toda a glória de viver

das gentes é ter dinheiro

e quem muito quiser ter

cumpre-lhe de ser primeiro

o mais roim que puder.

305

E pois são desta maneira

os contratos dos mortais

nam me lanceis vós da feira

onde eu hei de vender mais

que todos à derradeira.

310

Serafim

Venderás muito perigo

que tens nas trevas escuras.

Diabo

Eu vendo prefumaduras

que pondo-as no embigo

se salvam as criaturas.

315

Às vezes vendo virotes

e trago de Andaluzia

naipes com que os sacerdotes

arreneguem cada dia

e joguem até os pelotes.

320

Serafim

Nam venderás tu aqui isso

que esta feira é dos céus

vai lá vender ao abisso

logo da parte de Deos.

Diabo

Senhor apelo eu disso.

325

Se eu fosse tam mau rapaz

que fizesse força a alguém

era isso muito bem

mas cada um veja o que faz

porque eu nam forço ninguém.

330

Se me vem comprar qualquer

clérigo ou leigo ou frade

falsas manhas de viver

muito por sua vontade

senhor que lhe hei de fazer?

335

E se o que quer bispar

há mister hipocresia

e com ela quer caçar

tendo eu tanta em perfia

por que lha hei de negar?

340

E se uma doce freira

- vem à feira -

por comprar um inguento

com que voe do convento

senhor inda que eu nam queira

345

lhe hei de dar aviamento.

Mercúrio

Alto Tempo aparelhar

porque Roma vem à feira.

Diabo

Quero-me, eu concertar

porque lhe sei a maneira

350

de seu vender e comprar.

Entra Roma cantando:

Roma

Sobre mi armavam guerra

ver quero eu quem a mi leva.

Três amigos que eu havia

sobre mi armam prefia

355

ver quero eu quem a mi leva.

(Fala:)

Vejamos se nesta feira

que Mercúrio aqui faz

acharei a vender paz

que me livre da canseira

360

em que a fortuna me traz.

Se os meus me desbaratam

o meu socorro onde está?

Se os cristãos mesmos me matam

a vida quem ma dará

365

que todos me desacatam?

Pois se eu aqui nam achar

a paz firme e de verdade

na santa feira a comprar

quanto a mi dá-me a vontade

370

que mourisco hei de falar.

Diabo

Senhora se vos prouver

eu vos darei bom recado.

Roma

Nam pareces tu azado

pera trazer a vender

375

o que eu trago no cuidado.

Diabo

Nam julgueis vós pola cor

porque em al vai o engano

ca dizem que sob mau pano

está o bom bebedor

380

nem vós digais mal do ano.

Roma

Eu venho à feira dereita

comprar paz, verdade e fé.

Diabo

A verdade pera quê?

Cousa que nam aproveita

385

e avorrece pera que é?

Não trazeis bôs fundamentos

pera o que haveis mister

e a segundo são os tempos

assi hão de ser os tentos

390

pera saberdes viver.

E pois agora à verdade

chamam Maria peçonha

e parvoíce à vergonha

e aviso à roindade

395

peitai a quem vo-la ponha.

A roindade digo eu

e aconselho-vos mui bem

porque quem bondade tem

nunca o mundo será seu

400

e mil canseiras lhe vem.

Vender-vos-ei nesta feira

mentiras vinta três mil

todas de nova maneira

cada uma tam sotil

405

que nam vivais em canseira.

Mentiras pera senhores

mentiras pera senhoras

mentiras pera os amores

mentiras que a todas horas

410

vos naçam delas favores.

E como formos avindos

nos preços disto que digo

vender-vos-ei como amigo

muitos enganos enfindos

415

que aqui trago comigo.

Roma

Tudo isso tu vendias

e tudo isso feirei

tanto que inda venderei

e outras sujas mercancias

420

que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor

de Deos te comprei mentira

e a troco do temor

que tinha da sua ira

425

me deste o seu desamor.

E a troco da fama minha

e santas prosperidades

me deste mil torpidades

e quantas virtudes tinha

430

te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito

quero ir ver que vai cá.

Diabo

As cousas que vendem lá

são de bem pouco proveito

435

a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz Roma:

Roma

Tam honrados mercadores

nam podem leixar de ter

cousas de grandes primores

e quanto eu houver mister

440

deveis vós de ter senhores.

Serafim

Sinal é de boa feira

virem a ela as donas tais

e pois vós sois a primeira

queremos ver que feirais

445

segundo vossa maneira.

Ca se vós a paz quereis

senhora sereis servida

e logo a levareis

a troco de santa vida

450

mas nam sei se a trazeis.

Porque senhora eu me fundo

que quem tem guerra com Deos

nam pode ter paz c'o mundo

porque tudo vem dos céus

455

daquele poder profundo.

Roma

A troco das estações

nam fareis algum partido

e a troco de perdões

que é tesouro concedido

460

pera quaisquer remissões?

Oh vendei-me a paz dos céus

pois tenho o poder na terra.

Serafim

Senhora a quem Deos dá guerra

grande guerra faz a Deos

465

que é certo que Deos nam erra.

Vede vós que lhe fazeis

vede como o estimais

vede bem se o temeis

atentai com quem lutais

470

que temo que caireis.

Roma

Assi que a paz nam se dá

a troco de jubileus.

Mercúrio

Ó Roma sempre vi lá

que matas pecados cá

475

e leixas viver os teus.

Tu nam te corras de mi.

Mas com teu poder facundo

assolves a todo o mundo

e nam te lembras de ti

480

nem vês que te vás ao fundo.

Roma

Ó Mercúrio valei-me ora

que vejo maus aparelhos.

Mercúrio

Dá-lhe Tempo a essa senhora

o cofre dos meus conselhos

485

e podes-te ir muito embora.

Um espelho i acharás

que foi da virgem sagrada

co ele te toucarás

porque vives mal toucada

490

e nam sintes como estás.

E acharás a maneira

como .mendes a vida

e nam digas mal da feira

porque tu serás perdida

495

se nam mudas a carreira.

Nam culpes aos reis do mundo

que tudo te vem de cima

polo que fazes cá em fundo

que ofendendo a causa prima

500

se resulta o mal segundo.

E também o digo a vós

e a qualquer meu amigo

que nam quer guerra consigo

tenha sempre paz com Deos

505

e nam temerá perigo.

Diabo

Prepósito frei Sueiro

diz lá o exempro velho

dá-me tu a mi dinheiro

e dá ao demo o conselho.

510

Depois de ida Roma entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Denis Lourenço, e diz Amâncio Vaz:

Amâncio

Compadre vás tu à feira?

Denis

À feira compadre.

Amâncio

_______________ Assi

ora vamos eu e ti

ò longo desta ribeira.

Denis

Bofá vamos.

Amâncio

__________ Folgo bem

515

de te vir aqui achar.

Denis

Vás tu lá buscar alguém

ou esperas de comprar?

Amâncio

Isso te quero contar

e iremos patorneando

520

e er também aguardando

polas moças do lugar.

Compadre enha molher

é muito destemperada

e agora se Deos quiser

525

faço conta de a vender

e dá-la-ei por quasi nada.

Que eu quando casei com ela

diziam-me: hétega é.

E eu cuidei pola abofé

530

que mais cedo morresse ela

e ela anda inda em pé.

E porque era hétega assim

foi o que me a mim danou

avonda que ela engordou

535

e fez-me hétego a mim.

Denis

Tens boa molher de teu

nam sei que tu hás amigo.

Amâncio

Se ela casara contigo

renegaras tu como eu

540

e dixeras o que eu digo.

Denis

Pois compadre quanto à minha

é tam mole e desatada

que nunca dá peneirada

que nam derrame a farinha.

545

E não põe cousa a guardar

que a tope quando a cata

e por mais que homem se mata

de birra nam quer falar.

Trás dua pulga andará

550

três dias e oito e dez

sem lhe lembrar o que fez

nem tam pouco o que fará.

Pera que te hei de falar?

Quando ontem cheguei do mato

555

pôs uma enguia a assar

e crua a leixou levar

por nam dizer sape a um gato.

Quanto a mansa, mansa é ela

dê-me eu logo conta disso.

560

Amâncio

Juro-te eu que mais val isso

cincoenta vezes que ela.

A minha te digo eu

que se a visses assanhada

parece demoninhada

565

ante sam Bertolameu.

Denis

Já siquer terá esprito

mas renega da molher

que ò tempo do mester

nam é cabra nem cabrito.

570

Amâncio

A minha tinha eu em guarda

pera bem de minha prol

cuidando que era ourinol

e tornou-se-me bombarda.

Folga tu que essoutra tenhas

575

porque a minha é tal perigo

que por nada que lhe digo

logo me salta nas grenhas.

Entam tanto punho seco

me chimpa nestes focinhos

580

eu chamo polos vezinhos

e ela nego dar-me enxeco.

Denis

Isso é de coraçuda

nam cures de a vender

que se alguém te mal fizer

585

já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tam cortês

que se viesse ora à mão

que me espancasse um rascão

nam deria: mal fazes.

590

Mas antes se assentaria

a olhar como eu bradava.

Todavia a molher brava

é compadre a que eu queria.

Amâncio

Pardeos tanto me farás

595

que feire a minha contego.

Denis

Se queres feirar comego

vejamos que me darás.

Amâncio

Mas antes me hás de tornar

pois te dou molher tam forte

600

que te castigue de sorte

que nam ouses de falar

nem no mato nem na corte.

Outro bem terás com ela:

quando vieres da arada

605

comerás sardinha assada

porque ela jenta a panela.

Entam geme pardeos si

diz que lhe dói a moleira.

Denis

Eu faria per maneira

610

que esperasse ela por mi.

Amâncio

Que lhe havias de fazer?

Denis

Amâncio Vaz eu o sei bem.

Amâncio

Denis Lourenço ei-las cá vem

vamo-nos nós esconder

615

Vejamos que vem catar

que elas ambas vem à feira.

Mete-te nessa silveira

que eu daqui hei de espreitar.

Vem Branca Anes a brava e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

Branca

Pois casei màora e nela

620

e com tal marido prima

comprarei cá uma gamela

para o ter debaixo dela

e um gram penedo em cima.

Porque vai-se-me às figueiras

625

e come verde e maduro

e quantas uvas penduro

jeita nas gorgomeleiras

parece negro munturo.

Vai-se-me às ameixieiras

630

antes que sejam maduras

ele quebra as cereijeiras

ele vendima as parreiras

e nam sei que faz das uvas.

Ele nam vai à lavrada

635

ele todo dia come

ele toda a noite dorme

ele nam faz nunca nada

e sempre me diz que há fome.

Jesu Jesu posso-te dizer

640

e jurar e tresjurar

e provar e reprovar

e andar e revolver

que é milhor pera beber

que nam pera maridar.

645

O demo que o fez marido

que assi seco como é

beberá a torre da sé

entam arma um arroído

assi debaixo do pé.

650

Marta

Pois bom homem parece ele.

Denis

Aquela é a minha froxa.

Marta

Deu-te ele a fraldilha roxa?

Branca

Milhor lhe esfole eu a pele

que homem há i da puxa.

655

Ò diabo que o eu dou

que o leve em fatiota

e o ladrão que mo gabou

e o frade que me casou

inda o veja na picota.

660

E rogo à virgem da Estrela

e à santa Jerjalém

e òs choros da Madanela

e à asninha de Belém

que o veja eu ir à vela

665

pera donde nunca vem.

Denis

Compadre nô mais sofrer

sai de lá desse silvado.

Amâncio

Pera eu ser arrepelado

nam havia eu mais mester.

670

Denis

E nam na hás tu de vender?

Amâncio

Tu dizes que qués feirar.

Denis

Nam que ela se me tomar

leixar-me-á quando quiser.

Mas dêmo-las à má estrea

675

e voto que nos tornemos

e er depois tornaremos

com as cachopas da aldea

entonces concertaremos.

Amâncio

Isso me parece a mi

680

muito milhor que eu ir lá.

Oh que couces que me dá

quando me colhe sob si.

Denis

Quanto àquela si dará.

Diabo

Molheres vós que quereis?

685

Nesta feira que buscais?

Marta

Queremo-la ver nô mais

pera ver em que tratais

e as cousas que vendeis.

Tendes vós aqui anéis?

690

Diabo

Quejandos? De que feição?

Marta

Duns que fazem de latão.

Diabo

Pera as mãos ou pera os pés?

Marta

Não! Jesu, nome de Jesu,

Deos e homem verdadeiro!!!

695

Foge o Diabo e diz Marta Dias:

Marta

Nunca eu vi bofalinheiro

tam prestes tomar o mu.

Brancanes mana crê tu

que como Jesu é Jesu

era este o diabo enteiro.

700

Branca

Nam é ele pau de boa lenha

nem lenha de bô madeiro.

Marta

Bofá nunqu'ele cá venha.

Branca

Viagem de Jão Moleiro

que foi pola cal da acenha.

705

Marta

Pasmada estou eu de Deos

fazer o demo merchante.

Mana daqui por diante

nam caminhemos nós sós.

Branca

Se eu soubera quem ele era

710

fizera-lhe bom partido:

que me levara o marido

e quanto tenho lhe dera

e o toucado e o vestido.

Inda que mais nam levara

715

desta feira em estremo

me alegrara e descansara

se o vira levar o demo

e que nunca mais tornara.

Porque inda que era diabo

720

fizera serviço a Deos

e a mi mercê em cabo

e viera-me dos céus

como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

Marta

Dizei senhores de bem

725

nesta tenda que vendeis?

Serafim

Esta tenda tudo tem.

Vede vós o que quereis

que tudo se fará bem.

Conciência quereis comprar

730

de que vistais vossa alma?

Marta

Tendes sombreiros de palma

muito bôs pera segar

e tapados pera a calma?

Serafim

Conciência digo eu

735

que vos leve ao paraíso.

Branca

Não sabemos nós que é isso

dai-o ò decho por seu

que já nam é tempo disso.

Marta

Tendes vós aqui burel

740

do pardo, de lã meirinha?

Branca

Eu queria uma pucarinha

pequenina pera mel.

Serafim

Esta feira é chamada

das virtudes em seus tratos.

745

Marta

Das virtudes? E há aqui patos?

Branca

Quereis feirar a cevada

quatro pares de sapatos?

Serafim

Ó piadoso Deos eterno

nam comprareis pera os céus

750

um pouco de amor de Deos

que vos livre do inferno?

Branca

Isso é falar per pincéus.

Serafim

Esta feira nam se fez

para as cousas que quereis.

755

Branca

Pois quanto a essas que vendeis

daqui afirmo outra vez

que nunca as vendereis.

Porque neste sigro em fundo

todos somos negligentes

760

foi ar que deu polas gentes

foi ar que deu polo mundo

de que as almas são doentes.

E se o hão de correger

quando for todo danado

765

muito cedo se há de ver

que já ele nam pode ser

mais torto nem aleijado.

Vamo-nos Marta à carreira

que as moças do lugar

770

virão cá fazer a feira

que estes nam sabem ganhar

nem tem cousa que homem queira.

Marta

Eu nam vejo aqui cantar

nem gaita nem tamboril

775

e outros folgares mil

que nas feiras soem de estar.

E mais feira de Natal

e mais de nossa senhora

e estar todo Portugal.

780

Branca

Se eu soubera que era tal

nam estivera eu cá agora.

Vem à feira nove moças dos montes e três mancebos, todas com cestos nas cabeças cobertos, cantando. E como chegam se assentam por ordem a vender, e diz-lhe o Serafim:

Serafim

Pois vindes vender à feira

sabei que é feira dos céus

por tal vendei de maneira

785

que nam ofendais a Deos

roubando a gente estrangeira.

Tesaura

Responde-lhe Leonarda

tu Justina ou Juliana.

Juliana

Mas responda-lhe Giralda

790

Tesaura ou Merenciana.

Merenciana

Responde-lhe Teodora

porque creo que a ti crea.

Tesaura

Responda-lhe Dorotea

pois que mora

795

junto c'o juiz da aldea.

Dorotea

Móneca responderá

que falou já com senhor.

Móneca

Responde-lhe tu Nabor

contigo se entenderá.

800

Ou Denísio ou Gilberto

qualquer de vós outros três

e nam vos embaraceis

nem torvês porque é certo

que bem vos entendereis.

805

Gilberto

Estas cachopas nam vem

à feira nego a folgar

e trazem de merendar

nesses cestos que i tem.

Mas pois quanto ao que entendo

810

sois samica anjo de Deos.

Quando partistes dos céus

que ficava ele fazendo?

Serafim

Ficava vendo o seu gado.

Gilberto

Santa Maria, gado há lá?

815

Oh Jesu como o terá

o senhor gordo e guardado.

E há lá boas ladeiras

como na serra da Estrela?

Serafim

Si.

Gilberto

E a virgem que fazia ela?

820

Serafim

A virgem olha as cordeiras

e as cordeiras a ela.

Gilberto

E os santos de saúde

todos a Deos louvores?

Serafim

Si.

Gilberto

E que léguas haverá

825

daqui à porta do paraíso

onde sam Pedro está?

Nabor

Lá vem ò redor das vinhas

compradores a comprar

samica ovos e galinhas.

830

Dorotea

Nam lhe hei de vender as minhas

que as trago pera dar.

Vem dous compradores, um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

Mateus

Vós rosa do amarelo

mana tendes i queijadas?

Justina

Tenho vosso avô marmelo

835

[ … ] conhecei-lo?

Mateus

Aqui estão emborilhadas.

Justina

Estade màora quedo

pela vossa negra vida.

Mateus

Menina nam hajais medo

840

vós sois mais engrandecida

que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos meus olhos

nam mos vendais a ninguém.

Justina

Andar em burra e ter bem

845

ouvide ora o rasca piolhos

azeite no micho em que vem.

Vicente

Minha vida Leonarda

traz caça pera vender.

Leonarda

Vossa vida negra e parda

850

nam lhe abastará comer

da vaca com da mostarda.

Vicente

E a mesa de meu senhor

irá sem ave de pena.

Leonarda

Quem? E vós sois comprador

855

pois nem grande nem pequena

nam matou o caçador.

Vicente

Matais-me vós logo bem

com dous olhinhos que eu digo.

Leonarda

Mais vos mata a vós o trigo

860

porque nam val a vintém

e traz mau micho consigo.

Vicente

Vós fazeis de mi rascão.

Leonarda

Pação vos fizestes vós

porém bem vos vimos nós

865

guardar bois no Alqueidão.

Mateus

Que vindes vender à feira?

Teodora alma minha

minha alma minha canseira

trazeis alguma galinha?

870

Teodora

Som vossa alma galinheira.

Que màora cá viestes

pera quem vos pôs no Paço.

Mateus

Senhora eu que vos faço

que vos agastais tam prestes?

875

Dizei-me vós Teodora:

trazeis vós tal cousa e tal

deste jeito muito embora?

Teodora

Mas lá dessoutro metal

nam falam à lavradora.

880

Vicente

Senhora Móneca trazeis

algum cabrito recente?

Móneca

Nam bofé senhor Vicente.

Quisera ora trazer três

de que vós fôreis contente.

885

Vicente

Juro à santa cruz de palha

que hei de ver o que aqui está.

Móneca

Nam revolvais aramá

que nam trago nemigalha.

Vicente

Nam me façais descortês

890

nem queirais ser tam garrida.

Móneca

Pola vossa negra vida

olhade como é cortês

oh que lhe saia má saída.

Mateus

Giralda eu achar-vos-ei

895

dous pares de passarinhos.

Giralda

Irei por eles aos ninhos

entonces os venderei

comereis vós estorninhos.

Mateus

Respondeis como molher

900

muito de sua vontade.

Giralda

Pois digo-vo-la verdade

pássaros hei de vender.

Olhai aquela piedade.

Vicente

Senhora minha Juliana

905

peço-vos que me faleis

discreta palenciana

e dizei-me que vendeis.

Juliana

Vendo favas de Viana.

Vicente

Tendes alguns laparinhos?

910

Juliana

Si, de porca.

Vicente

__________ Nem coelhos?

Juliana

Quereis comprar dous francelhos

pera caçardes ratinhos?

Vicente

Quero polos evangelhos.

Mateus

Vós Tesaura minha estrela

915

nam viríeis cá em vão.

Tesaura

Pois si, vossa estrela vos era ela

como aquilo é de rascão.

Mateus

Mas como isso é de donzela.

Porém vá já como vai

920

e casemo-nos senhora.

Tesaura

Pois casai co ele casai

casar màora meu pai

casar màora.

Mateus

Porém trazeis algum pato?

925

Tesaura

E quanto dareis por ele?

Ui e ele revolve o fato

olho mau se meta nele.

Mateus

Nam trazeis vós o que eu cato.

Vicente

Merenciana deve ter

930

neste cesto algum cabrito.

Merenciana

Nam me haveis de revolver

senam pardeos que dê grito

tamanho que haveis de ver.

Vicente

Eu hei de ver que trazeis.

935

Merenciana

Se vós no cesto bolis.

Vicente

Senhora que me fareis?

Merenciana

Um áque del rei, ouvis?

Nam sejais vós descortês.

Vicente

Nam quero senam amores

940

pois vosso senhora sou.

Merenciana

Amores de vosso avô

o da ilha dos Açores.

Andar aramá vós só.

Mateus

Vamo-nos daqui Vicente.

945

Vicente

Bofá vamos.

Mateus

__________ Nunca vi tal feira.

Vicente

Vamos comprar à Ribeira

que anda lá a cousa mais quente.

Vão-se os compradores e diz o Serafim às moças:

Serafim

Vós outras quereis comprar

das virtudes?

Dizem todas:

__________ Senhor não.

950

Serafim

Saibamos por que rezão.

Dorotea

Porque no nosso lugar

nam dão por virtudes pão.

Nem casar nam vejo eu

por virtudes a ninguém

955

quem tiver muito de seu

e tam bôs olhos como eu

sem isso casará bem.

Serafim

Pois por que viestes ora

cansar à feira de pé?

960

Teodora

Porque nos dizem que é

feira de nossa senhora

e vedes aqui porquê.

E as graças que dizeis

que tendes aqui na praça

965

se vós outros as vendeis

a virgem as dá de graça

aos bôs como sabeis.

E porque a graça e alegria

a madre da consolação

970

deu ao mundo neste dia

nós vimos com devação

a cantar-lhe uma folia.

E pois que já descansámos

assi em boa maneira

975

moças assi como estamos

dêmos fim a esta feira

primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte com que se despediram.

Cantiga:

Primeiro.coro

Blanca estais colorada

virgem sagrada.

980

Em Belém vila do amor

da rosa naceu a flor

virgem sagrada.

Segundo.coro

Em Belém vila do amor

naceu a rosa do rosal

985

virgem sagrada.

Primeiro.coro

Da rosa naceu a flor

pera nosso salvador

virgem sagrada.

Segundo.coro

Naceu a rosa do rosal

990

Deos e homem natural

virgem sagrada.

Gratias agamus domino Deo nostro.

993