Auto Pastoril Português

Gil Vicente, 1523

Auto em pastoril português, representado ao muito alto e poderoso rei nosso senhor dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua cidade de Évora, pelo Natal.

Era do Senhor de 1523.

Entra primeiramente um lavrador por nome Vasco Afonso e diz:

Vasco Afonso

Pois que, já entrei aqui,

nam se me escusa falar...

Eu som dalém de Tomar,

e casei em Almeirim...,

ali mesmo no lugar.

5

Agora, agora, agora,

esta doma que lá vai...

Soma, que casei embora

sem licença de meu pai...,

e diz, que a nam quer por nora...

10

E seu pai, er, assi...,

porque se casou furtada,

nem chique, nem mique, nem nada

dão a ela, nem a mi...,

assi, pola desnevada!

15

De maneira,

que eles tem birra de nós...,

dizem que nem giesteira...,

pois, que nos casámos sós

nam temos na Panasqueira.

20

Perém, amor lhe tenho eu,

e ela, samicas a mi...,

que ela o diz, soma assi,

porque ela nam tem de seu,

meu pai deu-me, e eu fogi...

25

E juramento faço òs céus...,

que deram tantas a enha esposa,

que é pera dar graças a Deos...,

porque, bem como raposa,

lhe estiraram a ela os véus.

30

Ora, o nosso cura, er

porque se paga dela,

e sicais andou com ela,

soma vonda, que nam quer

receber-nos, a mim, e ela.

35

Mas raivar,

que já recebidos semos,

dentro bem, no seu linhar...,

todos os verbos dissemos

que se dizem ò casar.

40

Diziam a mim, lá deles,

que, quem casa por amores,

nam vos é nega dolores...,

emperol, que sabem eles,

Deos faz dos baixos maiores.

45

Aguardai,

digo agora, que casei

sem licença de meu pai,

e de enha mãe... Eu herdarei...,

ou sabeis como isto vai?

50

A mim, dizem-me que não,

e se é daquela maneira,

nam herdo eira nem beira,

mas nam semelha rezão...,

mas senefica cenreira.

55

Que se fora

a cachopa peca, ou charra,

ou algua zanguizarra,

preguiçosa ou comedora...,

que bradassem muito embora!

60

Mas tais vos fossem assi

as pulgas da vossa cama...,

soma abonda, que minha ama

me dixe lá em Almeirim,

nam sei como se ela chama:

65

Vai sandeu,

a Élvora por alvaral

del rei, que te dem o teu

como passar o Natal...

E a isto vinha eu...

70

E um Gil um Gil um Gil...,

que má retentiva hei...

Um Gil, cujo nam direi...,

um, que nam tem nem ceitil,

que faz os aitos a el rei.

75

Ele me fez...,

e tirou de minha aquela,

muito inda em que me pês...,

que entrasse cá na capela

previcar um antremês.

80

Aito, cuido que dezia,

e assi cuido que é,

mas nam já aito, bofé,

como os aitos que fazia

quando ele tinha com quê.

85

Mas o mundo

é já desgorgomelado,

todo bem, se vai ò fundo...,

o dinheiro anda acossado

e o prazer vagabundo.

90

Abonda, entrarão perém

treze trolucutores...,

estes, são todos pastores

de serra de Estrela, vem

em preito, com seus amores.

95

Atimar,

entrará Branca falando

com Inês, ambas a par,

- cantando de quando em quando, -

e às vezes sospirando

100

entre cantar e cantar.

Entrará enha sobrinha...,

e Costança das Ortigas,

que em todo Val das Corigas,

nem na vila, mui asinha,

105

nam jazem tais raparigas.

E como entrar,

sairá a bailar Valejo

o galinheiro, que em Tomar,

chamava ao coelho conejo...,

110

esse mesmo há de bailar.

E por festa, a Ramalhoa

bailará com Pero Luz,

vestido no seu capuz...,

e farão a entrada boa

115

do bailo c'o sinal da cruz.

Pé de Ferro,

bofá, um bom escudeiro,

bom homem, lá per seu erro,

ledo, humilde, prazenteiro,

120

salvos nega, se me eu erro!

Este sairá a terreiro,

com uma regateira baça,

que, quando vende na praça,

tange às vezes um pandeiro...,

125

estes, ambos terão graça.

A cristaleira

e o almotacel pequeno,

bailarão à derradeira...,

e tanger-lhe-á o Moreno,

130

que sabe os bailos da Beira.

Frades, virão, vinte e sete,

que vem de furtar melões...,

e virão três hortelões,

que trarão preso um grumete,

135

sem jaqueta, nem calções.

E acabado,

que os frades todos andarem

um contrapasso trocado,

e os outros atimarem,

140

será o aito atimado!

Entra Caterina pastora cantando com o gado:

(cantando)

Caterina

Tirai os olhos de mim

minha vida e meu descanso,

que me estais namorando.

Fala:

Cha cha cha raivarão elas

145

samicas doudejais vós...,

se eu lá vou veremos nós

se sondes cabras se aquelas.

O decho se chantou nelas

cha cha cha reira de morte

150

nem no mato nem na corte

nam pode o decho co elas.

(cantando)

Tirai os olhos de mim

minha vida e meu descanso

que me estais namorando.

155

Fala:

Os vossos olhos senhora

senhora da fermosura

por cada momento de hora

dão mil anos de tristura.

[(cantando)]

Temo de nam ter ventura

160

vida não me esteis olhando

que me estais namorando.

Vem Joane e diz Caterina:

A que vens Joane cá?

Joane

Bofás samicas nam sei

estoutra domá te catei

165

casuso e nam eras lá.

Preguntei a ta mãe por ti.

Caterina

Tu a minha mãe por mi?

Joane

Abém. Digo: que é de Catelina?

E ela estava mofina

170

disse-me: e que lhe queres assi?

Bem sei eu que já ela aventa

que ando eu contego à choca

que quando te eu trougue a roca

já ela estava rabugenta.

175

[ …ão]

Caterina

Nam te empaches de mim não!

Cha cha cha demoninhadas.

Joane

Pois sicais te quero aosadas

grande bem se vem à mão.

Sempre eu hei de ser contego

180

lá detrás da casa ò sol.

Caterina

Joane vai fazer prol

que tens tu de ver comego?

Jesu como me amofina.

Joane

Já tu aqui és Catalina

185

com tua destempara.

Caterina

_________________ Si,

ora vai-te aramá di.

Joane

Alguém te a ti empipina.

Caterina

Quem me há mim de empipinar?

Joane

Pode ser que alguém te engane.

190

Caterina

Digo que te vás Joane

que nam te quero escutar.

Cuidas tu que sam menina?

Joane

E dei-te eu a roca Catalina

e sobi em cima da pereira

195

e tu agora à derradeira

jogas comego almolina.

Caterina

Que falas ou que hás contego

que tudo isto nam te presta?

Joane

Pardeos forte birra é esta

200

que tomaste hoje comego!

Porque és má dia entirrada

eu nam quero de ti nada

senão abraçar como amiga.

Caterina

Quem te desse uma grã figa

205

nos olhos bem pespegada.

Joane

É essa a tua saia nova?

Mostra cá a ver que lã tem.

Caterina

Joane.

Joane

_____ Catalina.

Caterina

______________ Ora bem

o demo te a ti faz a cova.

210

Joane

Tomai lá, esta vos é ela.

Caterina

Tal foste com Madanela

e sempre chufou de ti

pois que esperas tu de mi

que sam mais valente que ela?

215

Joane

Ò dexemo que te eu digo

que porque isso é já sabido

ando eu assi transido

e o demo anda comigo.

Renego ora de enha mãe!

220

Porque as lágrimas me saem

o dia que te nam vejo

e tu tens-me tal entejo

que os espritos se me caem.

Caterina

Choros maus chorem por ti

225

quem te manda a ti chorar?

Joane

Tu me hás de fazer botar

mui cedo per esse chão per i.

Nam sejas ora entirrada

Catalina minha dama

230

que cedo hei de ir à feira

e eu farei de maneira

que tu sejas bem toucada.

Nam me arrarão alfenetes

e também enxaravia.

235

Caterina

Aperfia tu perfia

que c'o dexemo te metes.

Joane

Que cachopa esta e que vida.

Caterina

Cuidas que sam Margaída

que andavas pola chufar.

240

Joane

Eu?

Caterina

___ Abém.

Joane

_________ Atimar.

Caterina

Mas vai-te co a má ida.

Joane

Quanto eu nam sei que te fige

que tal escândola me tens.

Caterina

Mas nam sei a que cá vens

245

que a ninguém tanto mal quige.

Joane

Por bem querer mal haver.

Caterina

Ora tens bem de comer.

Joane

Isso é foscas mui asinha

por me meter rebentinha

250

mas perol nam te hei de crer.

Caterina

Vai vai Joane bogiar

nam andes como alpavardo.

Joane

Viste já o meu saio pardo?

Se mo vês hás de raivar…

255

[…em]

que me está tam bem tam bem

que demo é isto? Dirás tu.

Caterina

Oh como és parvo Jesu

nam fales ante ninguém.

Joane

Oh comendo ò demo a vida

260

a que a eu arrepincho

Catalina se me eu incho

par esta que me vá de ida.

A Índia nam está i?

Que quero eu de mim aqui?

265

Milhor será que me vá...

Caterina

E a mim que se me dá.

Eis Fernando vem ali.

Venhas embora Fernando

eu te esperei à portela.

270

Fernando

Parece cá Madanela?

Caterina

Spera. Que a andas buscando?

Já me tu a mim entejaste?

Joane

Ah si Catalina.

Fernando

____________ Tu vás-te

andar polos chavascais.

275

Joane

Ah si Catalina.

Caterina

____________ Ora nô mais

avonda que me leixaste.

Joane

Ah si Catalina.

Fernando

____________ Nam. Diz:

pera u foi Madanela?

Caterina

Por que preguntas por ela?

280

Fernando

Porque a fortuna quis.

Caterina

Dores de morte te dem.

Joane

Ah si Catalina? Ora bem

se xe me eu isso soubera

nunca te eu a roca dera

285

que trougue de Santarém.

Madanela de longe:

Madanela

Ai Catalina Catalina.

Fernando

Aquela te é Madanela.

Caterina

Hou.

Fernando

____ Pera cá vem ela.

Joane

Mui grande é minha mofina!

290

Olha cá pera onde estou.

Caterina

Ò diabo que te eu dou.

Joane

Amém que me eu encomendo

e nam me estarei moendo

na desenteria em que estou.

295

Vem Madanela e diz:

Madanela

Afonso parece cá?

Eu nam sei onde ele anda.

Fernando

Inda dura essa demanda?

Madanela

Inda dura e durará.

Fernando

Oh caiso mal comedido.

300

Ando eu por ti perdido

e tu andas-me assoviando.

Caterina

Queres tu do pão Fernando?

Fernando

- Estarei bem aviado -

e muito bem corregido.

305

Madanela

Viste Afonso, Caterina?

Caterina

Sabes tu onde ele se ia?

Fernando

Nam lho digas.

Madanela

____________ Que perfia

de Fernando e de mofina.

Fernando

Grande ódio me tem.

310

Joane

E Catalina a mim também.

Madanela

Catalina onde estava ele?

Caterina

Ei-lo vem. Não é ele aquele?

Joane

Aquele é ele que ali vem.

Vem Afonso e diz Madanela:

Madanela

Afonso venhas embora.

315

Afonso

Não vejo eu Inês aqui.

Madanela

Olha olha pera mim

que nam sam fea màora.

Afonso

Viste-me Inês cá andar?

Caterina

Casuso a vi eu estar.

320

Afonso

Naquele outeiro?

Caterina

______________ Abém.

Afonso

Perguntou-te por alguém?

Caterina

Por Joane.

Afonso

________ Ora andar.

Por mim nam preguntou nada?

Caterina

Não.

Afonso

____ Raiva moída.

325

Caterina

Por Joane é ela perdida.

Joane

Está ela logo enganada.

Inês de longe:

Inês

Catalina ai Catalina.

Caterina

Aquela é ela que retina.

Inês vem cá mana vem.

330

Joane

Se tu me quiseras bem

nam na chamaras malina

mas do mal querer te vem.

Vem Inês e diz Afonso:

Afonso

Venhas embora Inês.

Inês

Joane queres belotas?

335

Mais quero eu às tuas botas

que a dous Afonsos nem três.

Joane

Ó Catelina.

Caterina

_________ Ó Fernando.

Fernando

Ó Madanela.

Madanela

Ó Afonso

________ ó quando quando

340

me quererás algum bem?

Afonso

Ó Inês quanto mal tem

esta maleita em que ando.

Inês

Ó Joane quam amiga

que sam do teu bom doairo.

345

Joane

Se nam tens outro repairo

quant'eu nam sei que te diga.

Fernando

Isto chamam amor louco

eu por ti e tu por outro.

Rogo-te aramá Madanela

350

pois màora te vi e nela

que me escutes ora um pouco.

Porque algorrém se me entende

eu a domá que passou

este braço me ganhou

355

emperol gansei per ende…

Abonda que um decém

um decém e um vintém.

Meu pai er tem bem de seu

e nam tem filho negu'eu

360

está atêntega Madanela

vem agora a Pascoela

casemo-nos tu e eu.

Madanela

Catalina é minha amiga

sei que se paga de ti.

365

Caterina

Fernando por meu mal te vi

como lá diz a cantiga.

Joane

Oh comendo ò decho a praga

gingrai lá com tais cachopas

leixas quem de ti se paga.

370

Caterina

E tu por que nam faes sopas

com Inês pois que te afaga?

Inês

Agora lhe fio eu

ua camisa de linho

queres Joane toucinho

375

c'um pouco de pão do meu?

Afonso

E a mi raiva que me aperte.

Inês

Vai-te que nam quero ver-te

nam tens tu aí Madanela?

Fala fala tu co ela

380

ò diabo dou a morte.

Como é partuno Jesu.

Madanela

- Afonso. -

Afonso

Pesar ora de sam Pego.

Madanela

E assi o faes tu comego

bofá avizimau és tu!

385

Nam sei que houveste contego.

Fernando

Maus lobos me acabem já.

Caterina

Guarde-te Deos earamá

pois que seria de mi?

Mas casemo-nos eu e ti.

390

Fernando

E Joane raivará!...

Pois pardeos bem te servi.

Comego seja essa dança

nam andes assi do vento.

Caterina

Toda me ora eu arrebento

395

pola tua maridança.

Afonso

Sabes Joane que façamos?

Vamo-nos todos três.

Joane

_________________ Vamos

e busquemos outras três

eu te farei a ti Inês

400

que me jejues os Ramos.

Vem Margaída, pastora que achou uma imagem de nossa senhora e trá-la escondida num feixe de lenha, e diz:

Margaída

Ai manas, que eu achei.

Caterina

Onde?

Margarida

_____ Na serra, em cima!

Madanela

Que é Margarida, prima?

Margarida

Quasi, quasi, nam o sei.

405

Inês

Chufas?

Margarida

______ Nam, pardeos amigas!

Caterina

Rogo-te que no-lo digas.

Margarida

Mas é pera adivinhar

e quem quer que o acertar

eu a fartarei de migas.

410

Inês

Será algum cogumelo?

Margarida

Nam que tem olhos e mãos.

Caterina

São caçapos temporãos.

Madanela

Mas samicas pesadelo.

Caterina

Onde o trazes?

Margarida

____________ Na lenha.

415

Caterina

É raposo, Deos mantenha.

Margarida

Si raposo teu pai torto.

Inês

Ouriço cacheiro morto.

Margarida

Não é cousa que pele tenha.

Madanela

Mas sabeis que é? Leitão

420

que tem couro e nam tem pele.

Margarida

Leitão isso vos era ele.

Inês

Ele nam há de ser cão.

Margarida

Nem ave nem cousa viva

nem morta.

Caterina

_________ Ou cativa.

425

E tem pés e mãos e olhos?

Margarida

E narizes e giolhos

nem é cousa mansa nem esquiva.

Caterina

Rogo-te que digas que é

que isso parece patranha.

430

Margarida

Tenho-a eu por façanha

e nam pequena abofé.

Caterina

Nam o dessengules mais.

Margarida

Se atêntegas estais

muito asinha vos direi

435

o que vi e que achei

contanto que me creais.

Chegando à Pena Furada

aquém da Virgem da Estrela

achei ser uma donzela

440

bofá donzela dourada.

E como a vi como digo

saltou tal temor comigo

porque ela relozia

que estava se fugeria

445

tal claror tinha consigo.

E um menino brincando

com seis ou sete donzelas

santas pareciam elas.

Madanela

Isso seria sonhando.

450

Margarida

Mas antes bem acordada

nam me quereis vós crer nada?

Caterina

Dize dize Margaída.

Margarida

Pois chufa tu Madanela

que nossa senhora era ela.

455

Caterina

Oh!...

Margarida

____ Por minha vida.

Assi seja eu bem casada

e Deos se lembre de mim.

Caterina

Que te dixe mana enfim?

Margarida

Chamou-me bem assombrada…

460

E eu queria chorar…

E ela foi-me afagar.

Caterina

E que te dixe despois?

Margarida

Que deixasse andar os bois

e que me fosse ao lugar.

465

E fosse ao nosso cura e digo

que vi a virgem Maria

e que ela lhe prometia

de lhe dar um bom castigo…

Que horas nunca lhe rezou

470

nem dela sóis se acordou.

Fernando

Houveras-lhe de dizer

que nam lhe escapa molher.

Inês

Ò demo que o eu dou.

Eu vos direi: é ele tal

475

que a filha de Jan'Afonso

foi-lhe pedir um responso

e ele falava-lhe em al.

Afonso

Alguns deles vão per i

e ne Estremadela assi

480

nam lhes fica moça boa.

Joane

Bom machado na coroa

que ficasse logo ali.

Fernando

Seixo calvo.

Afonso

__________ Mas setada.

Madanela

Arrocho de azambujeiro.

485

Caterina

Mas pousada de palheiro

e fogo e a porta fechada.

Afonso

Mas bom feixe lagariço.

Inês

Penedo.

Madanela

______ Trama.

Caterina

____________ Somiço.

Margarida

Eu quero ir avisar

490

ca lhe compre de rezar

e tornar-se a seu serviço.

Par esta cruz manas minhas

que ela está dele assanhada.

Inês

Ó virgem nossa avogada

495

que os gados encaminhas.

Caterina

Quem ma vira?

Inês

____________ Quem lá fora.

Madanela

Tu prima naceste embora.

Margarida

Se viras o cachopinho

tam fermoso e sesudinho

500

filho de nossa senhora.

Tudo eu hei de dizer

ao nosso cura tá o cabo

e ò priol.

Inês

_______ Esse diabo

nunca te há de querer crer.

505

Afonso

E do priol disse algorrém?

Margarida

Nam falou nem mal nem bem.

Joane

Também ele é bom piloto.

Afonso

Mas é valente minhoto

que apanha as frangãs mui bem.

510

Joane

Dou eu já ò decho o reixelo.

Fernando

E Pero Gil capelão

que lhe dizes?

Joane

___________ Que barão

como lhe elas vem apelo…

Nenhumas lhe escaparão!

515

Afonso

E Jan'Afonso altos pés.

Fernando

Também esse é bom freguês

e muito gamenho zote.

Joane

Ontem lhe dei eu um mote

sobre isso bem português.

520

Vão-se earamá casar

e nam andar de soticapa

juro a Deos se eu fora Papa

eu lhes secara o cantar.

Margarida

Nam me bula aqui ninguém

525

neste meu feixe de lenha

atá que eu vá e venha

nam veja ninguém qu'aqui vem.

Porque eu vou a chamar

que venham com devação

530

os milhores do lugar

a levar em procissão

o que a virgem me quis dar.

Vai-se, e diz Afonso:

Afonso

Quante eu não me posso ter

vejamos o que isto é.

535

Joane

Vejamos por tua fé

que grã cousa deve ser.

Desata o feixe Afonso e diz:

Afonso

Ela omagem me afegura

ó senhora virgem pura.

Caterina

Quem vos trougue a esta serra?

540

Fernando

Ponde os giolhos em terra.

Afonso

Ponhamo-la nesta verdura.

E posta a imagem, diz Joane:

Joane

Pois nam sabemos rezar

façamos-lhe uma chacota

porque toda a alma devota

545

o que tem isso há de dar.

Fernando

Façamos que bem será.

Caterina

Joane tir-te tu lá

dá-me tu a mão Fernando.

Fernando

Nisso estava ora eu cuidando

550

Madanela vem tu cá.

Madanela

Com Afonso quero eu.

Afonso

Inês mana eu contigo

que nunca tam grande amigo

em tua vida tens de teu.

555

Inês

Por que andas bogiando?

Madanela

Ora fuge lá Fernando.

Joane

Onde nam há concordança

nam há i festa nem dança

nem estemos perfiando.

560

Vem Margaída com quatro clérigos, e diz Fernando:

Fernando

Ó corpo de Deos sagrado

quanto zote que cá vem.

Margarida

Nam quisestes vós perém

condecer no meu mandado…

Ora seja já embora!...

565

Padres vedes a senhora

que eu achei bem acasuso.

Clérigo

Jesu eu estou confuso.

Outro

Deos te salve emperadora.

Hino: O gloriosa domina. Rezado a versos pelos clérigos à imagem de nossa senhora

Ó gloriosa senhora do mundo

570

excelsa princesa do céu e da terra

fermosa batalha de paz e de guerra

da santa trindade secreto profundo.

Santa esperança ó madre de amor

ama discreta do filho de Deos

575

filha e madre do senhor dos céus

alva do dia com mais resplandor.

Fermosa barreira ó alvo e fito

a quem os profetas dereito atiravam

a ti gloriosa os céus esperavam

580

e as três pessoas um Deos infinito.

Ó cedro nos campos estrela no mar

na serra ave fénis uma só amada

uma só sem mácula e só preservada

uma só nacida sem conto e sem par.

585

Do que Eva triste ao mundo tirou

foi o teu fruto restituidor

dizendo-te ave o embaixador

o nome de Eva te significou.

Ó porta dos paços do mui alto rei

590

câmara chea do spírito santo

janela radiosa de resplandor tanto

e tanto zelosa da devina lei.

Ó mar de ciência a tua humildade

que foi senam porta do céu estrelado

595

ó fonte dos anjos ó horto cerrado

estrada do mundo pera a devindade.

Quando os anjos cantam a glória de Deos

nam são esquecidos da glória tua

que as glórias do filho são da madre sua

600

pois reinas com ele na corte dos céus.

Pois que faremos os salvos per ela

nacendo em miséria tristes pecadores

senam tanger palmas e dar mil louvores

ao padre e ao filho e espírito e a ela.

605

Aqui ordenam sua chacota, e a letra da cantiga é a seguinte:

Quem é a desposada?

A virgem sagrada.

Quem é a que parira?

A virgem Maria.

Em Belém cidade

610

muito pequenina

vi uma desposada

e virgem parida.

Em Belém cidade

muito pequenina

615

vi uma desposada

e virgem parida.

Quem é a desposada?

A virgem sagrada.

Quem é a que parira?

620

A virgem Maria.

Nua pobre casa

toda relozia

os anjos cantavam

o mundo dezia:

625

Quem é a desposada?

A virgem sagrada.

Quem é a que parira?

A virgem Maria.

629

E com esta chacota se despediram.

Laus Deo.